A antagonista - Capítulo 3
Antônio tinha acabado de chegar
até a empresa. Tinha tirado licença para tratar de alguns assuntos e por essa
razão seguira até lá para uma reunião.
Seguia para a sua sala quando a
secretária veio ao seu encontro.
– Perdão, senhor Del La Cruz, mas o senhor
Trevan deseja lhe falar.
– Eu não tenho tempo para atender empregados
da classe operária. – Falou irritado, seguindo para a porta, porém foi
interceptado pelo homem. – Não tenho tempo nem vontade de falar com
subalternos.
– Se eu fosse o senhor eu
aceitaria ter uma conversa comigo, ou posso ir embora e entregar um material
bastante interessante para a imprensa.
Ana tinha acabado de sair do banho.
Precisava estudar, teria provas na próxima semana.
Seguiu até o espelho e começou a
trançar os longos cabelos.
Mordiscou a lateral do lábio inferior.
Ainda tinha em seu corpo as
sensações maravilhosas que sentira quando Lorena lhe tocara. Nunca imaginara
que havia algo tão delicioso no universo. Poderia passar o dia todo sendo
tocada…e tocando-a, mesmo que não tivesse muito talento ainda, mesmo assim
sabia que também tinha conseguido satisfazê-la.
Esboçou um sorriso.
Pensava quando poderia encontrá-la
novamente.
Naquele dia não tivera problema em
voltar ao shopping e encontrar os seguranças. Conseguira inventar uma mentira e
assim ninguém suspeitara de nada. Quem sabe poderia fazer a mesma coisa…
Passara várias vezes por sua
cabeça contar tudo ao pai. Por que ele não aceitaria? Afinal, ele tinha a
esposa e um amante, não tinha razões para lhe julgar.
Observou os livros sobre a
escrivaninha. Deveria preparar-se para a prova que teria esta semana.
Estudaria e depois traçaria o
próprio destino. Se tivesse um trabalho não precisaria se submeter a Antônio e
assim poderia ficar ao lado da namorada. Tinha se inscrito para participar de
um projeto com um dos professores e se saísse bem, poderia conseguir um bom
estágio. Também havia o violino, tocava muito bem, talvez ganhasse dinheiro
fazendo o que mais gostava.
Observou o anel que tinha ganhado
dela. Era um sinal de compromisso que ambas tinham.
Sobressaltou-se quando a porta
do seu quarto foi aberta com um arrombo.
Viu o olhar de Antônio em sua
direção e antes que pudesse falar algo, recebeu a primeira bofetada.
Ana cambaleou e antes que
pudesse se recuperar, recebeu outro tapa ainda mais forte, jogando-a no chão.
– Vagabunda imunda! – O
senador vociferava. – Impura do demônio.
A adolescente sentia a cabeça
rodar da pancada, não tinha forças para levantar, mas antes que buscasse se
recuperar, foi levantada com brusquidão pelos seguranças do pai.
Antônio lhe arrancou o roupão,
deixando-a nua e com a fivela do cinto começou a chicoteá-la.
– Maldita miserável! Que
castigo me foi enviado!
A jovem gritava de tanta dor,
mas isso não parecia tocar o coração do político que apenas batia mais e mais.
Clarice entrou e ficou
horrorizada com o que via, quando tentou fazer algo, foi empurrada com tanta
violência que bateu a cabeça contra o móvel, ficando desacordada.
Ana tentava abrir os olhos,
mas não conseguia, parecia que algo a impedia de fazê-lo. Tentou se mexer, mas
estava imobilizada. Gritou, mas o som não parecia sair da sua garganta, estava
preso lá. Ao conseguir focar nas imagens que apareciam distorcidas não soube
identificar o lugar onde estava.
Tentou chamar pela mãe, mas não
conseguiu.
Voltou a fechar os olhos e mais uma vez
adormeceu.
– A paciente parece
controlada, doutor. – O enfermeiro dizia. – Talvez não seja necessário que
fique aqui no hospital psiquiátrico… – Disse relutante.
O médico olhava curioso para a
jovem bonita. Há uma semana ela estava ali. Pelo que fora afirmado pelo pai, a
garota tinha tido um excesso de fúria, atacando a própria mãe que se encontra
internada em estado grave. Mas ele sabia qual era a real verdade, fora
confessada a si e ganhara muito dinheiro para participar do plano do senador.
– Acredito que ela ficará por
muito tempo aqui…mantenha-a sedada, vai ser melhor. – Disse, tocando-lhe a
face. – O mais importante nesse momento é que fique quieta…também não deve
comentar o caso, seja discreto. – Advertiu-o.
– O senhor sabe que sempre
sou…
Ele assentiu e deixou a sala.
O enfermeiro parecia
consternado diante da adolescente que parecia ter um terrível futuro pela
frente.
O barão observava a garota
sobre a cama.
Viu a costura que tinha sido feita
para reconstruir o lábio partido
– Vai para um convento… e trate
de se comportar lá...Não quero problemas ou mando seu protetor para a prisão.
Os olhos negros da jovem
apenas fitavam o homem a sua frente sem falar nada. Ela o tinha visto algumas
vezes, mas ainda parecia não entender qual poder ele tinha sobre sua vida.
– Você não pode fazer isso… –
Trevan protestou.
– Não só posso, como farei e
você vai aceitar…deixarei que fique responsável por isso, até pode ir
visitá-la, mas não deve tirá-la de lá.
– Mas e se eu me responsabilizar
pela educação? Eu vou ter um novo cargo na empresa, posso cuidar da Gabriele.
O barão o segurou pelo
colarinho.
– Você fará o que eu mandar! –
Empurrou-o. – Não esqueça que posso te jogar na prisão.
O homem fez um gesto afirmativo
com a cabeça. Nada mais podia fazer diante daquela terrível ameaça.
Cinco anos depois…
Antônio estava de braços dados
com sua nova esposa, Francisca.
Clarice fora levada para uma
casa de apoio. Desde que despertara do coma, não se recordava de nada da sua
vida, nem mesmo quem era. O senador usou isso para poder obter um divórcio
rápido, sem nem mesmo deixar nada para a esposa, tampouco para a filha que
permanecia internada no manicômio.
Ana tinha recebido permissão para
ficar no jardim. Estava sentada em um banco perto de uma macieira.
Os olhos claros pareciam
perdidos, enquanto olhavam para o vazio. Demorara muito para se acostumarem com
a claridade do dia.
Que dia seria aquele?
Fitou as próprias mãos,
tremiam.
Sua pele estava demasiada
branca, pálida pela falta de sol.
Seu pesadelo não tinha fim.
Era como se seu suplício recomeçasse. Não havia esperança, não havia amanhecer,
apenas aquele vazio que não acabava. Talvez fosse assim que Prometeu se
sentisse em ter seu fígado devorado todos os dias pelos abutres.
Demorou para entender o que tinha
acontecido. Demorou para perceber como o pai tinha sido cruel em lhe trancar
naquele lugar.
Ouviu passos e viu o enfermeiro
que cuidava de si durante aqueles longos anos.
– Precisamos entrar, o médico vai
chegar e sabe que não gosta que venha aqui fora. – Falava com seu sotaque
francês, enquanto olhava para os lados. – Mon ami, precisa ser forte. – Alisou-se
os cabelos em desalinhos.
Desde que Ana chegara ali, o
enfermeiro condoeu-se da sua situação. Ela parecia tão perdida. Ninguém ia até
lá para visitá-la, era como se tivessem tentando apaga-la das suas mentes. O
francês sempre se perguntava por qual razão alguém jogaria a filha em um
hospital psiquiátrico, ainda mais quando era perceptível que a jovem não tinha
nenhum problema mental. Várias vezes tinha visto o relatório que era feito
sobre a Del La Cruz, em nenhum deles constava que ela estava bem, sempre dizia
que era perigosa e que seria necessário mantê-la internada.
Ela levantou-se,
segurando-lhe as mãos do seu protetor.
– Por favor, Pierre, eu
preciso que me ajude…sabe que não estou louca…sabe disso…preciso que tente
falar com a Lorena de novo…– Falava com a respiração acelerada. – Ela…ela vai
poder me ajudar... Ela nem deve saber onde estou...Diga que estou aqui...
O rapaz baixou a cabeça,
parecia não ter coragem de encará-la.
Sentia-se penalizado pela situação
da moça. Vi-a dia a dia definhando, apagada e escondida de todos. Não podia
fazer nada para ajudá-la, mas várias vezes já tentara e nunca obtivera nenhuma
resposta positiva.
– Por favor…– Ajoelhou-se. –
Tente falar com ela… – Implorava entre soluços. – Ela me ama, vai me ajudar…
O homem pareceu perder a
paciência, levantou a paciente, segurando-a firmemente pelos ombros.
– Ela não te ama…– Disse
pausadamente. – A vi várias vezes em
manchetes de jornais, sempre aparentar estar muito bem, mas não tive coragem de
te falar… – Soltou-a, enquanto passava a mão pelos cabelos. – Vamos voltar para
o quarto.
Os olhos azuis pareciam
confusos.
– O que quer dizer com isso?
– Não posso fazer nada…já me
arrisquei muito quando tentei falar com a sua mãe…Olhe, se o doutor descobrir
ele não vai te deixar sair nunca mais daquele quarto, então colabore...
– Eu juro que não a
machuquei…eu nunca fiz nada…– Repetia sempre parar. – Eu não machuquei
ninguém…eu não fiz nada com ninguém…
Lágrimas corriam por sua face.
– Seu pai nunca vai permitir que
saia daqui…ele é muito poderoso, Ana. – Disse tocada pela dor que via em seu
olhar. – E eu não acredito que essa mulher possa fazer algo por você.
Como se sentia mal com tudo
aquilo. Várias vezes pensara em tirá-la dali, mas não podia, seria preso
imediatamente se isso acontecesse.
A Del La Cruz não falou mais
nada, apenas fez o que o enfermeiro lhe pediu.
Devagar a jovem seguia de volta
para o quarto.
– Não quero nada desses móveis,
então tratem de colocar tudo para fora. – Francisca ordenava aos empregados. –
Tudo o que comprei vai chegar até o final da semana, então preciso me livrar de
tudo isso.
– Não acho que seja necessário,
mamãe.
O rapaz olhava tudo ao redor.
– Como não? Não vou viver em um
lugar com os móveis escolhidos por aquela mulherzinha.
Antony colocou as mãos nos bolsos
da calça.
– Eu olho para tudo isso e fico
enojado, ainda mais depois do fim que deram para a herdeira.
– Fim? – Ela indagou horrorizada.
– A maldita da filha enlouqueceu e quase matou a todos e a mãe agora virou uma
inútil.
– A Ana Valéria era uma garota
muito inteligente, todos sabem disso, não consigo acreditar que de uma hora
para outra surtou… – Falou demonstrando sua total incredulidade. – Bem, todos
sabemos o que aconteceu… – Esboçou um sorriso… Papai soube fazer um bom jogo…
– Não ouse falar isso, seu pai já
deixou claro que não deseja nem mesmo ouvir sobre ela nessa casa.
Francisca saiu esbravejando com
os empregados, enquanto o filho olhava tudo com desdém. Ele não acreditava na
história do pai, sabia bem do que tinha acontecido entre a meia-irmã e Lorena.
Ele mesmo tinha armado a relação, só não imaginou que o senador iria tão longe…
Colocou as mãos nos bolsos da
calça, ponderando sobre o que suas ações tinham causado.
No convento, a madre superiora
observava a garota sentada no refeitório.
– Não quero ficar aqui! – A
menina dizia a uma das irmãs. – Quero voltar para casa.
Há quase cinco anos, fora
incumbida por um pedroso barão a aceitar a garotinha em suas dependências. Não
pudera negar-se, ainda mais pelo fato daquela construção ter sido edificada em
um terreno doado pela família Bamberg.
– Você não pode, sabe muito bem
disso, seu avô não permite.
Gabriele levantou-se.
– Quando eu crescer irei embora
daqui.
Antes que a freira falasse algo,
a menina já saia correndo do refeitório.
Outra religiosa aproximou-se ao
ver toda a cena.
– É muita crueldade, madre,
obrigar essa criança ficar aqui.
– Não há nada que possamos
fazer, não podemos correr o risco de sermos expulsas daqui…seria horrível…Temos
crianças para cuidar…Algumas de nós já somos idosas…
– Por que não tenta conversar
com o barão? A menina já está aqui há muito tempo e mesmo assim se nega a
ficar…
A mais velha interrompeu-a
aborrecida:
– São ordens e ela vai ter que
segui-las.
O quarto estava trancado. Mais uma
vez Ana tinha sido levada para lá. Ela se machucara ao protestar mais uma vez
contra os remédios que era obrigada a tomar. Passava a maioria do tempo dopada
e quando se negara a fazê-lo, fora obrigada pelo médico que não se importar em
usar a força para isso.
-- Acha que pode me desafiar, Del La
Cruz? – O psiquiatra indagava.
O homem gordo era o responsável por
aquele lugar. Alguns achavam que era uma clínica de reabilitação, poucos sabiam
as maldades que eram praticadas naquele hospital.
Ele tinha pedido que levassem ao seu
consultório a filha de Antônio depois que descobrira que a moça não estava
tomando os medicamentos. Escondia e depois cuspia, mas as câmeras flagraram a
cena.
-- Tudo poderia ser mais fácil se
cooperasse... – Ele levantou-se, parando por trás de Ana, massageando seus
ombros. – Você é muito bonita...se fosse boazinha comigo, eu poderia lhe dar
mais privilégios aqui dentro.
A ruiva cerrou os dentes em asco.
Odiava aquele homem, a forma que
agia tentando tocá-la. Aquela não era a primeira vez que ele agia assim.
Ele levantou-a.
-- Eu posso lhe dar muito,
querida...
Ana virou a cabeça quando ele a
tentou beijar, porém ele continuava insistindo, pressionando-a contra a mesa,
tentando abrir a bata, Mas ela buscava livrar-se dos avanços.
A moça tateava sobre a mesa algo que
pudesse usar para afastá-lo, então pegou uma caneta, enfiando em sua coxa.
Furioso, o médico a esbofeteou
forte, jogando-a no chão.
-- Desgraçada!
O sangue já manchava toda sua calça
branca.
A força que Ana usara fora tanta que
o objeto partira-se ao meio e apenas uma parte estava penetrada em sua carne.
Os enfermeiros entraram ao ouvir o
grito do médico.
-- Levem essa miserável e a coloquem
em uma camisa de força. – Ordenou.
Pierre abriu a porta e a viu sobre
o leito. Estava amarrada. Fora cruelmente espancada.
– Ana… – Chamou-a baixinho. – Mon ami...
Ela abriu os olhos lentamente.
Estavam roxos e inchados. Um corte no canto dos lábios.
– Eu disse para que não se
rebelasse. – O enfermeiro dizia preocupado. – Você não devia, olhe como está… –
Tocou-lhe a face. – Está toda ferida, meu bem. – Usou um lenço para limpar o
fio de sangue que corria pelo canto dos lábios cheios. – Deus, como podem ser
tão malvado com você.
A jovem mal conseguia abrir a boca
para falar algo. Estava bastante debilitada. Tinha sido colocada a camisa de
força. Nem podia se mexer.
Já pensara várias vezes em pedir
demissão, não tinha mais psicológico para trabalhar naquele lugar, porém não
tinha coragem de deixar a Del La Cruz sozinha ali.
– Não desafie mais o doutor, ele não se
importa em te ferir…
Sim, ela sabia disso. Fazia
muitos anos que vivia aquele inferno sem fim. Anos que fora cruelmente
abandonada por todos. Em alguns momentos de lucidez, recordava-se da namorada e
pensava se ela sabia que estava naquele lugar. Talvez estivesse fazendo algo
para tirá-la dali…O enfermeiro estava mentindo quando falara que ela não se
importava…Era mentira…Amavam-se e em breve ficariam juntas…
Uma semana depois.
O carro estacionou um pouco
afastado do hospital psiquiátrico. Antônio vestia um sobretudo e um chapéu que
conseguia evitar ser reconhecido. Não desejava chamar atenção, ainda mais
naquele ano que sua campanha não parecia uma das melhores. Fora informado pelo
médico sobre a rebeldia que Ana continuava a ostentar. Pensara que depois de
tantos anos e tantos medicamentos, ela já teria cedido e entendido sua loucura.
Como ousara ser tão desgraçada ao
se deitar com uma mulher? Ainda sentia vontade de matá-la, só não o fez porque
Clarice tinha aparecido na hora.
Irritado, deixou o veículo.
Caminhava apressadamente e logo
atravessava os portões. Observou por alguns instantes o lugar. Não parecia tão
ruim como diziam que era. Havia uma construção branca em três andares, a grama
verde convidava toda a propriedade. Bancos para os pacientes tomarem sol e
receberem visitas das famílias.
Uma jovem bem vestida apareceu e
seguiu com ele até o interior do prédio. Chegando à recepção foi levado
rapidamente a sala do médico.
– Senador, é uma honra sua
presença aqui. – O homem foi logo se adiantando para lhe apertar a mão. –
Sente-se. – Disse com um sorriso. – Deseja um café? Um chá ou outra bebida? É
só falar e será providenciado.
O Del La Cruz deu de ombros,
enquanto observava a sala com desdém.
– Quero ver a Ana di Pace.
O médico empalideceu.
– Ela está um pouco indisposta…
– Isso não me importa, quero vê-la,
tenho algo para lhe mostrar e acredito que depois disso, se não está louca, vai
ficar.
O psiquiatra acomodou-se em sua
cadeira.
– Antes que vá, quero que saiba
que ela tentou falar com a tal namorada…
– E como ela fez isso? – Indagou
por entre os dentes. – Pensei que tivesse o controle de tudo, Alezandro… Não
esqueça que o seu cargo à frente da saúde desse estado requer alguns
sacrifícios.
– Sim, eu sei e acredite, estou
fazendo tudo para isso, porém havia uma pedra no caminho…
Antônio levantou-se.
– Acredito que já tenha se
livrado dela.
O médico fez um gesto afirmativo
com a cabeça, esboçando um sorriso.
– Agora posso ver a sua paciente
mais especial? – Indagou desdenhosamente.
– Está bem! – Seguiu até a porta.
– Eu mesmo o levarei até ela.
Ana tentava levantar, mas o fato de
estar com a camisa de força não permitia que se mexesse.
Cambaleou e acabou caindo.
As lágrimas corriam da sua face e ela
nem podia limpá-las. A confusão aos poucos ia passando, já se recordava do que
tinha acontecido e da forma que fora tratada.
Por que tudo aquilo estava
acontecendo consigo? – Essa era sua maior indagação.
Por que ninguém a tirava daquele
lugar?
Observou o prato de comida jogado no
chão. Já havia alguns bichos do apodrecimento da carne.
Tentou prender a respiração. Tudo
parecia podre naquele lugar.
Ouviu passos e não demorou para a
porta abrir-se.
Os olhos feridos fitaram a odiosa
figura do homem que a trancara ali.
Antônio olhava para a filha e não
parecia sentir nada, não se compadecia ao vê-la tão machucada. Observou o
quarto sujo. O fétido aroma de vômitos…
Observou a jovem que um dia lhe
chamara de filha. Enojava-se ao vê-la. Desejara tanto que ela tivesse morrido.
Como ainda sobrevivia àquele inferno?
Fitou o psiquiatra.
– Ela teve um excesso de fúria e tivemos que a
conter. – O médico justificava-se. – A jovem continua a se rebelar contra o
tratamento, não percebe que isso só vai atrasar ainda mais a sua cura.
-- Faça o que for preciso, não deve
interromper a medicação! – O político falou como se tivesse em um discurso
público. – Continue com o tratamento até que possa ser sociável novamente.
A Del La Cruz com muito esforço
levantou a cabeça e mesmo com a visão turva, conseguiu distinguir a imagem do
pai.
Como ele pudera ser tão cruel?
Quem era aquele monstro que lhe encarava com prazer em vê-la assim?
Tentou abrir a boca para falar algo,
mas não conseguiu.
O médico saiu, deixando-os sozinhos.
Antônio observou os hematomas na
face que um dia fora bonita. Os cabelos que antes eram sedosas estavam em total
desalinhos.
– Veja o castigo que Deus te deu por
ter se deitado com uma mulher. – O senador começava. – Vai morrer nesse lugar e
sabe por quê? Porque foi uma tola.
Ele aproximou-se, segurando-lhe
as madeixas fortemente, obrigando-a a encará-lo.
Retirou um envelope do bolso e de
dentro retirou algumas fotografias, mostrando a jovem.
– Veja a sua vergonha!
Ana viu as imagens do seu encontro
íntimo com Lorena.
De repente, parecia que os
remédios que a deixava dopada tinham perdido o total efeito sobre seu cérebro.
Parecia que revivia o momento,
que sentia os beijos, as declarações e juras de amor que foram feitas.
“Confie em mim.”
– Você deve estar se perguntando
como fiquei sabendo não é? – Segurou-a pelos ombros, levantando-a. – A próprio
Lorena me enviou e me chantageou, ela hoje tem um cargo diretivo na companhia e
você aqui apodrecendo. – Cuspiu em sua face. – Sua mãe está em uma clínica, louca
igual a você, desde a pancada que você lhe deu.
– Mentira… – Ela conseguiu dizer
com muito baixinho. – Mentira… – Dessa vez repetiu com mais força.– Foi
você…foi você…você a empurrou...
Antônio exibiu um desdenhoso
sorriso.
– E quem vai acreditar? – Fez um
gesto negativo com a cabeça. – Você tinha um futuro maravilhoso pela
frente…inteligente, rica…agora é uma louca que vai morrer aqui. – Empurrou-a. –
Esse é o castigo que Deus te enviou….arrependa-se e acabe com seu sofrimento…
Retire o mal que está dentro de você e liberte seu espírito…
Ana tentava levantar, mas era
uma tarefa difícil.
– O que te faltou? – Ele
continuava. – Era o meu orgulho, seria a mais poderosa desse país, mas essa
maldita doença apossou-se de ti…Agora o que você é?
Antônio recolheu as fotos e sem
mais palavras, saiu insensivelmente do cômodo.
Ana Valéria cerrou os dentes com
toda força que tinha, mas não se permitiu chorar, daquela vez não verteria
nenhuma lágrima. Não se entregaria mais uma vez aquela dor que nunca passava…
Pensou em Lorena…
Seria verdade o que o pai
dissera?
Não, ele devia estar fazendo tudo
aquilo para atormentá-la mais ainda…e as fotos?
Precisava ver Pierre. Ele tinha
que saber de algo, podia esclarecer toda a história.
Um mês havia se passado e só
naquele momento Ana fora libertada da camisa de força. Não tinha visto mais o
único que se preocupava consigo. Outros atendentes que pareciam ter ficado
responsáveis por seus cuidados sempre a tratavam muito pior que o psiquiatra.
Viu a porta abrir e ao levantar a
cabeça viu o amigo.
– Olá, senhorita…
Ela estava sentada no chão.
Respirou devagar.
O enfermeiro entrou e trouxe algo
para ela comer. Colocou a bandeja sobre a cama.
O médico ficara furioso quando ficou
sabendo que o rapaz tinha tentado falar com alguém sobre a situação da jovem, transferindo-o
para outra ala, porém misteriosamente, reintegrou de novo a sua função como
cuidador da moça.
Observou o lugar com desprezo.
O quarto tinha sido limpo naquela
madrugada, pois haveria uma inspeção sanitária. Esse era o único motivo para
higienização, pois na maioria do tempo, tudo ali era uma verdadeira podridão.
Até mesmo tinham dado banho na
Del La Cruz, algo que não costumavam fazer, mantendo-se sempre em situação
péssima de higiene.
– Alimente-se, querida, está muito
magra e pálida.
– Por que me…me deixou?
Ele aproximou-se, e tocou os fios
embaraçados.
Não podia falar que fora
obrigado a assumir outros pacientes, porém agora conseguira retornar com a
promessa que não voltaria a se intrometer nos assuntos da herdeira de Antônio.
– Eu preciso que me faça um
grande favor, Pierre.
O rapaz fez um gesto negativo com
a cabeça.
– Se o doutor descobrir, serei
mandado embora… Voltei para cuidar de você, então apenas aceite ou nós dois
teremos problemas.
A garota segurou-lhe a mão.
Encarando-o em verdadeira súplica.
– É o último favor que te
pedirei…eu preciso, por favor, me ajude…nunca mais pedirei nada a você…
O enfermeiro percebia que ela
parecia mais lúcida. Não estava como antes, muito fraca sim. Estava bem mais
magra, entretanto conseguia falar de forma mais clara, diferente de antes.
– Me ajude…
Ele temia o que poderia lhe
acontecer se cedesse a vontade da menina, porém tinha tanta pena da moça. Sabia
que ela não tinha nenhuma doença, mas acabaria louca naquele lugar de tanto
remédio que lhe davam e de tanto que apanhava. Ela não podia se negar a nada
que já era motivo para ser espancada e colocada em uma camisa de força.
– Preciso que fale com
alguém…Lorena…lá na empresa do meu pai…diga que estou aqui…peça que me
ajude…que faça algo…
– Acha que ela vai te ajudar? Eu
não acredito que fará algo, Ana…sinceramente, não acredito nessa mulher…
– Ela vai me ajudar…eu sei que
vai… – Colocou a mão no peito. – Nós nos amamos…
Pierre não acreditava nisso.
Tinha feito uma pesquisa sobre a tal mulher e ela não parecia agir como alguém
que estava sofrendo.
– Será a última vez…
Ana fez um gesto afirmativo com a
cabeça.
Era sua última esperança.
Dois anos depois…
O barão estacionou o carro diante
do manicômio.
Ele sempre teve obsessão pela jovem
Del La Cruz e agora chegara o momento de conseguir o que tanto almejava.
Queria-a para si, seria seu maior troféu.
Sua secretária pessoal estava ao
seu lado.
– A sua reunião com os banqueiros
está marcada. – Ela avisou-lhe. – O coquetel já foi providenciado, tudo estará
perfeito.
Ele fez um gesto afirmativo com
a cabeça, enquanto fitava a colaboradora de longos anos.
– Branca, quero que comece a
organizar meu casamento.
A mulher estava com o notebook
sobre o colo. Respondia alguns e-mails quando ouviu a frase dita por seu
empregador.
Há mais de dez anos, trabalhava
com o barão de Bamberg. Administrava seus negócios e também era responsável por
sua agenda pessoal. Ele sempre deixara claro que havia uma mulher que tinha
sido destinada para ele desde o nascimento, essa era a razão por nunca ter
casado. Ficou a pensar se depois de tanto tempo ele tinha conseguido realizar
seu mais ambicioso plano: desposar Ana Valéria Del La Cruz.
– Isso mesmo, agora tenho todos os
meios para realizar meu desejo. – Sorriu de forma cruel. – Acho que passar
tantos anos aqui já domou a alma rebelde…
Branca permanecia calada. Sabia
do grande mal que acontecera a jovem. Sabia que ela tinha sido internada pelo
pai há muitos anos, mas não imaginara que o barão ainda a queria.
Conhecia bem aquele homem de mais
de oitenta anos. Sabia como era sádico e cruel com as mulheres. Como as tratava
como um objeto descartável. Perdera as contas de quanto dinheiro tivera que
pagar para evitar escândalos envolvendo o nome do devasso Bamberg.
Um dos seguranças abriu a porta
do veículo dando passagem ao patrão.
O empresário olhava tudo ao redor
com desprezo. Esperara pacientemente todos aqueles anos para ir até ali. Com
seu poder, conseguira acesso rápido à jovem.
Seguia pelo gramado acompanhado
da assistente. Um enfermeiro veio ao seu encontro, conduzindo-o por entre as
frondosas árvores.
De longe, viu a filha de
Antônio. Não parecia mais a adolescente que o encantara. Estava suja,
maltrapilha, os cabelos não brilhavam mais como fogo, estavam sem vida.
Ela estava sentada no jardim.
Parecia dispersa…perdida…
– Senhorita…
Ana levantou a cabeça e viu o
homem magro, alto e encurvada a sua frente.
Por alguns segundos, não
conseguiu se recordar de quem era.
Não se importava mais em deixar de
tomar os medicamentos, agora aceitava tudo o que lhe davam, assim conseguia
esquecer suas dores. Desde que soubera sobre Lorena, tudo perdera o sentido
para si. Não havia mais lutas, não havia mais brigas. Apenas existia naquele
lugar, esperando ansiosamente o dia que não mais viveria, o dia que toda aquela
dor deixaria sua alma.
Observou a mulher que a fitava.
Viu a pena em seu olhar…
O velho a olhava curioso.
– Não me reconhece mais, bambina?
Ela fez um gesto afirmativo.
Ela tentou falar, mas não conseguia
juntar as palavras e formular a frase.
– O que fizeram contigo hein? –
Segurou-lhe o queixo.
Ana mal conseguia manter os
olhos abertos de tão dopada que estava.
– Case-se comigo e te tiro
daqui hoje mesmo.
Aquela frase soou longe, mas
depois ficou clara o suficiente.
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