A víbora do mar - Capítulo 7 - O confronto

            Era uma manhã de domingo. Logo a primavera chegaria. Era possível ouvir os pássaros, pareciam alegres com a chegada da temporada das flores.

            Os portões da mansão do duque eram abertos para receber os convidados. Um manobrista ficara responsável de estacionar os veículos, enquanto outro empregado vestido formalmente encaminhava os chegantes até a área que aconteceria a cerimônia.

Mel esteva ao lado do noivo no jardim da mansão. Havia várias pessoas para a celebração de casamento de Fernando Del Santorro.

                Muitos companheiros e companheiras da marinha foram convidados, além de outros amigos importantes da família, como políticos e empresários. O príncipe Ralf não pudera comparecer, pois alegara que teria que retornar ao seu país para resolver alguns problemas que surgira.

            A tenente sentiu o delicado beijo em sua mão.

 Juan parecia mais apaixonado que nunca.

            A jovem observava tudo ao redor e ainda conseguia ver a imagem da mãe sentada em uma das espreguiçadeiras, arrumando-lhe as boias para que não se afogasse na piscina ou quando sentava em uma das mesas e ela aproximava-se com biscoitos e sucos, tornando as horas de estudos mais agradáveis.

            Passou o polegar na face, evitando assim que uma lágrima rompesse.

            Sentia-se feliz pelo pai finalmente ter decidido refazer a vida ao lado de Ana. Ela era uma mulher bonita, advogada e já fora casada uma vez. Deveria ter uns quarenta anos. Ambas não tinham muito contato, porém simpatizara com a madrasta, sempre a tratava com gentileza e como não tivera filhos, mostrava interesse em desempenhar esse papel com a enteada.

               Sir Arthur acomodou-se ao lado da neta. Observava o olhar saudoso. Tinha certeza de que ela pensava em Marie, sabia como fora sofrido para a tenente e aquela perda nunca fora superada.

            Estivera com ela mais cedo naquele dia. Ouvira a indignação da militar com a presença da Lacassangner na comemoração do príncipe, ouvira dos lábios bonitos inúmeras vezes que não deixaria que tudo o que a pirata fizera passasse de forma incobrável.

            Começava a preocupar-se com os próximos passos que seguiria aquela história.

            Se tivesse acabado com a vida da filha de Iraçabeth nada disso estaria acontecendo. Na noite que aquela criança veio ao mundo soubera que só seria fonte de problemas e isso fora concretizado pouco a pouco e agora a situação parecia sair do seu controle. Nesse momento nada poderia fazer, teria que tomar cuidado, pois ela não era apenas a filha do Serpente agora, era também uma mulher importante que começava a ser vista como a sheika.

            Balançou a cabeça em irritação.

            -- Tudo bem?

            A voz de Mel lhe interrompeu os pensamentos. Via o olhar inquisidor a lhe analisar.

            O homem fez um gesto afirmativo e depois de alguns segundos disse:

               -- Seu pai merece recomeçar a vida dele... Passou muitos anos sozinho... Fico feliz por esse momento. 

              A jovem apenas assentiu.

            -- Sim, vovô, estou muito contente por ele.

            O almirante depositou um beijo em sua face, depois ficou a prestar atenção na cerimônia.

             --  Em breve seremos nós, meu amor. -- Juan sussurrou-lhe. -- Mas você vai estar muito mais linda entrando na igreja… toda de branco... Já vejo nossos convidados bobos diante da sua beleza.

               Mel apenas sorriu sem tecer nenhum comentário.

            O casamento era a última coisa que passava por sua cabeça naquele momento.

            Viu alguns olhares a lhe encarar, enquanto cochichavam algo.

            Soltou um longo suspiro de exasperação.

 Deveria manter a calma, mesmo não aguentando mais ouvir comentários sobre o retorno da Samantha.

               Todos diziam que ela era uma sheika, uma mulher poderosa. Ainda comentavam sobre a amante que estava ao seu lado e que passaram a noite em uma boate a dançar.

                Ela deveria estar em uma prisão e não livre como se tivesse pago a dívida que tinha com a sociedade.

            Ainda conseguia recordar-se do olhar em sua direção. Viu nos olhos azuis que fora reconhecida...

            Cerrou os dentes ao lembrar-se do ataque que sofrera quando a pirata estava inconsciente...

                Remexeu-se na cadeira, inquieta.

                Sir Arthur a fitou.

            -- O que se passa?

            Os olhos dourados fitaram os mais velhos.

            Suspirou pesadamente como se estivesse sufocada.

            -- Não consigo me conformar com o retorno dessa bandida, não consigo aceitar que devamos viver como se nada nunca tivesse acontecido... Ela é uma assassina! – Abaixou mais o tom de voz ao ver alguns olhares curiosos. – Precisamos provar sua culpa, não podemos cruzar os braços diante de tudo isso.

            O almirante a repreendeu com o olhar.

                -- Filha, não quero que fique assim, quero que continue vivendo sua vida… a sua moto já foi mandada para a fazenda. Ela foi adaptada de forma que você possa  pilotar e se não conseguir segurá-la, há um mecanismo que a ajuda a ficar firme... – Segurou-lhe a mão. – Deixe que com a Lacassangner, seu pai e eu resolvamos... Nós iremos provar a culpa que ela tem, enquanto você deve apenas se preocupar em se recuperar, casar com o Juan e construir sua vida longe de tudo isso... Não se meta com essa mulher! – Ordenou-a.

                Mel meneou a cabeça negativamente, o olhar expressava desafio, porém não continuou com a discussão, pois sabia que aquele não era o momento adequado, então apenas disse:

            -- Sinto muito, vovô, mas não ficarei quieta, enquanto vejo essa maldita pirata seguir com a vida como se nada tivesse acontecido.

            O almirante abriu a boca para retrucar, mas decidiu que aquele era o momento de calar, sabia que não conseguiria nada naquele momento, conhecia bem a neta, sabia que ela retrucaria até deixa-lo cansado e sem argumentos.  



                Samantha estava sentada na poltrona da sala na cobertura do hotel. Ouvia Miranda e a via na tela da TV em uma chamada de vídeo. 

            Nada que estava sendo dito parecia novidade. Desde que tinha aceitado participar do plano, fora explicado toda a situação.  

                Fazia mais de uma hora que estava acertando todos os detalhes.

                -- Eliah já está na fazenda, seguiu para lá com o administrador que foi contratado, também se adiantou para receber os cavalos que chegaram ontem.

               -- Sim, eu já falei com ele mais cedo, estava organizando tudo. -- Cruzou as pernas.

               Tinha saído com a Belinda durante toda a semana para boates, precisara aparecer em inúmeras casas de show, tendo uma rotina corrida e agora se sentia aliviada por poder seguir para a fazenda.

                --  A Gemaque me mandou o relatório dos últimos dias, acho que você se saiu muito bem, até parecia mesmo uma sheika.

                 A Lacassangner ajeitou o nó do roupão preto que usava. Sentia-se incomodada quando lhe chamava assim, mas não discutiria.

                -- Sou uma boa atriz.

                -- Realmente… -- Segurou o riso. -- Você vai ter um lago enorme na sua fazenda, tem um jetsky, vai poder matar a vontade de ter contato com a água. Claro que antes terá que conseguir cuidar daquele lugar que parece que estava abandonado a séculos...—Torceu o nariz em desagrado. -- O povoado é pequeno, mas há uma quitanda que vende coisas que necessitara... – Deu uma pausa. – Acredito que não vai ser fácil, aquelas pessoas são manipuladas pelo Santorini e pelo duque, deve tomar cuidado, são camponeses ignorantes, podem ser um perigo para sua vida.

                -- Sim, eu sei, mas não estou nenhum pouco preocupada com isso… -- Tomou um pouco de água. – Estou acostumada a lidar com o ódio...

                -- Samantha, não subestime...

               -- Não estou fazendo isso. – Disse calmamente. – Apenas sei que não devo esperar nada de bom e isso é algo comum.

            Miranda mostrava-se impaciente diante do descaso que a filha do Serpente sempre mostrava. Ficava a pensar o que poderia quebrar aquela camada tão grossa de gelo que parecia servir-lhe de casulo.

            -- Siga o plano, só faça o que fora dito... Fora isso, pode ter uma vida normal, comporte-se como uma sheika...

            -- Eu sou o enfeite do seu plano? – Indagou com sarcasmo. – A cereja do bolo?

               -- Na verdade, você, minha cara pirata, é a distração…

               -- Na verdade eu sou o alvo…

            A Maldonado gostava da forma inteligente que a filha do Serpente conseguia entender os fatos.

               -- Sim... Deveria mostrar preocupação com isso...

                -- E você realmente acha que isso me afeta?

               -- Não, eu sei que não, tenho a impressão que estou falando com uma rocha, impenetrável.

              -- Eu estou fazendo papel na frente dos outros de uma sheika fútil que só se importa com frivolidades... Vou a boates, danço, sou rodeada por belas mulheres e apareço em jornais...

              Naquele momento a Maldonado esboçou um riso.

            Realmente, ela estava se saindo bem nesse papel.

              -- Se cuide, use o colete, e use a arma que te dei.

              Samantha assentiu.

               Conversaram por mais alguns minutos e depois a chamada foi encerrada.

               A Lacassangner seguiu até a fachada do quarto. Apoiou-se no guarda corpo, observando a bela praia que se mostrava a sua frente.

               Ainda não tinha parado para pensar em seu retorno àquela terra, ainda tinha a impressão que estava anestesiada das emoções.

                Fitou a aliança que ainda carregava em seu anelar.

                Fizera planos para viver ao lado daquela mulher, de amá-la durante cada dia da sua vida, mas tudo pareceu tão rápido… era como se estivesse a segurar em uma tábua em alto mar e aos poucos se afogava... perdendo seu porto seguro...

                  O vento lhe desmanchou o coque que prendia os cabelos, então os arrumou, colocando alguns fios por trás da orelha.

                  Não se importava com nada e tampouco com o desprezo de todas aquelas pessoas. Acostumara-se com isso quando ainda era uma criança.

            Fechou os olhos por alguns segundos, apenas se concentrando no som que vinha do mar, no cheiro marítimo que era o seu aroma preferido.

                 Sentiu mãos delicadas a lhe massagear os ombros.

                 -- Precisamos chegar ao heliporto, temos que pegar o helicóptero para ir até a fazenda.

               Samantha ouvia a voz da agente que estava sempre ao seu lado.

                -- Você vai comigo? – Indagou sem se voltar.

                -- Não seguirei contigo até lá, antes ficarei aqui para investigar alguns fatos… vai sentir minha falta?

                A Lacassangner se voltou para a agente Gemaque.

                -- Você se comporta assim em todos os seus trabalhos?

               -- Só quando se trata de morenas de olhos azuis e corpo sexy.

              A pirata suspirou.

              -- Agradeço o seu empenho no papel que está desenvolvendo, mas saiba que é praticamente impossível que aconteça algo entre a gente.

            Belinda gargalhou.

              -- Eu sei, por isso que eu gosto, se você me quisesse eu já teria te dado um chega pra lá, mas como não quer, eu consigo fazer um bom papel de acompanhante de luxo... Você é presunçosa...

             -- Acho que um pouco...

             -- Muito... Já pensa que quero deitar nua na sua cama... – Segurou as pontas que prendiam o roupão. – Sou muito profissional.

            A víbora fez um gesto afirmativo com a cabeça, enquanto encarava a “amante”.

              -- Samantha, eu sei que não se importa com tudo o que está acontecendo, sei que há um vazio em seu coração, mas não pode simplesmente agir como se estivesse morta, precisa aprender a viver…-- Acariciou-lhe a face. -- Seus olhos são tão lindos, mas parecem perdidos, baixos… Sem vidas...

               -- Não se preocupe, sei fazer muito bem o meu papel. -- Beijou-lhe a mão. -- Vou me arrumar para que me deixe no heliporto.

              Belinda deu um misterioso sorriso, enquanto observava a bela mulher se afastar. Não se importaria realmente em se jogar nos braços da pirata, seria a primeira vez que executaria seu trabalho duplamente.

 

 

 

            A fazendo que foi adquirida para ser residência de Samantha não estava em um estado tão bom. Na verdade, o que havia de mais interessante era a grande quantidade de terra, o rio que cortava as terras e o haras que estava desativado, também havia uma usina que deixara de funcionar décadas atrás.              

             Miranda achara mais produtivo que aos poucos a Lacassangner pudesse arrumar tudo segundo a sua própria vontade, assim seria uma distração, talvez isso a fizesse sair daquela concha que criou para si e ninguém conseguia penetrá-la.

              Eliah parecia frustrado, parado em meio ao pátio da propriedade. A casa estava pronta para a chegada da Samantha, mas o resto não, pois não conseguira empregados para desempenhar as funções.

              Sabia que o retorno àquele país não seria fácil, mas começava a temer o que poderia acontecer naquela terra isolada. Passara tantos anos presos sem saber o que tinha acontecido com a filha do Serpente, pensando se estava viva ou se tinham conseguido destruí-la como sempre fora o desejo do maldito pai de Iraçabeth.

              Ouviu o som da aeronave que se aproximava. Afastou-se, enquanto esperava que pousasse.

               Passava das duas da tarde, mas naquele dia o sol estava encoberto por nuvens escuras.

             Alguns minutos se passaram até que a nave baixasse totalmente, depois de algum tempo, viu a bela pirata aparecer.

             Sorriu ao vê-la, sentia-se feliz por estar ao lado dela mais uma vez, amava-a como se fosse do seu próprio sangue.

            Continuava tão linda como antes. Viu-a algumas vezes através daqueles aparelhos modernos que ainda não aprendera usar. A senhora Miranda lhe contara tudo o que acontecera com a Lacassangner, sobre a esposa que fora assassinada e sobre os anos encarcerada em uma prisão de segurança máxima.

              Viu-a parada lá, usava os óculos espelhados de aviador o que escondia seus olhos azuis. Usava jaqueta de couro vermelha, blusa social preta e calça jeans. Trazia nos pés um par de botas de couro marrom.

                Já pensava em se aproximar, mas a mulher seguiu em sua direção, trazia uma mochila nas costas.

            Andava com a cabeça erguida, mas tinha um olhar sem expressão.

              -- Por sua cara, o seu retorno na cidade grande não foi nada agradável.

            Eliah abraçou-a, fê-lo tão forte, enquanto sentia as lágrimas lhe molharem a face.

            A víbora permaneceu ali, sentindo como quando era uma garotinha e tinha o bom companheiro para ajudá-la com seus pesadelos.

            Sentia-se culpada por tudo o que passou com o grande amigo do seu pai. Fora inconsequente quando seguira até a cidade para o encontro com Ester, isso custara caro... Um preço que ainda era cobrado de si.

            -- Seja bem-vinda, pirata! – Disse-lhe segurando a face. – Estou muito feliz por finalmente tê-la aqui. – Afastou-se um pouco. – Não mudou nada, está linda, maravilhosa. – Deu-lhe um beijo estalado na bochecha.

             Samantha colocou as mãos na cintura, enquanto observava tudo ao redor.

             Era um lugar grande, um pouco deteriorado, mas bastante atraente. Morros circundavam as terras, parecia um carpete verdejante por toda parte, conseguira ver bem tudo do alto.

             A casa tinha apenas um andar, a pintura estava gasta, mas era bastante grande, toda cercada de alpendres. Havia alguns degraus que levavam a porta da entrada.

              -- Acho que esse lugar é isolado suficiente para quando tudo isso terminar eu permanecer.

              -- Um dia de cada vez não é esse o plano? -- Eliah questionou com um piscar de olho.

               Samantha retirou os óculos.

               -- Imagino que ninguém queira trabalhar aqui… -- Comentou ao ver o lugar vazio.

              -- Ainda estou procurando…

             A mulher deu de ombros.

             -- Daremos contas disso…

            

 

             Mel estava no pátio da fazenda. A moto estava lá, tinha sido trazida pelo noivo.

            A tenente desceu as escadas apoiada nas muletas tendo ao seu lado a amiga e fisioterapeuta.

             -- Menina, não deve pilotar essa máquina.

              A voz de Marina, sua adorável babá, ecoava em reprovação.

            -- Não se preocupe, babá, eu cuido da minha amada. -- Juan soprou-lhe um beijo.

             A tenente Aproximou-se, montando a máquina.

            -- Vamos dar uma voltinha…





            O pequeno povoado estava pavoroso. Ficaram sabendo da chegada da pirata à região.

            O lugar era pequeno, mesmo assim havia muita gente que vivia de trabalhar naquelas terras e com a compra de uma das maiores fazendas da região por Samantha, haveria muitos desempregados, visto que havia um verdadeiro pacto para ninguém aceitasse trabalho na propriedade da Lacassangner.

              Sir Arthur não perdera tempo, reunindo-se com todos em um dos ginásios da região.

             -- Essa mulher deve sentir a rejeição de todos vocês a sua chegada. -- O avô de Mel esbravejava. -- Ninguém vai trabalhar para ela, nada será vendido para essa assassina maldita.

              A tenente tinha acabado de chegar com o noivo na reunião.

              -- Como assim? Essa mulher está morando aqui? – Indagou aproximando-se...

              Juan olhou para o mais velho em um pedido de desculpas. Nem sabia que o homem estava ali, fora alguns moradores que contaram o ocorrido e a Santorini exigirá ir até lá.

              -- Eu iria até a fazenda para te contar, filha, foi uma surpresa para mim também, vim direto para cá para organizar tudo e contratar homens para sua proteção.

              -- Minha proteção? O que estão fazendo essas pessoas aqui? – Segurou mais forte as muletas.

              -- Estamos aqui para fecharmos todas as portas para Lacassangner, ela vai sentir como é rejeitada. Ninguém trabalhará ou venderá algo para ela, vamos destruí-la.

               Matias que pronunciara o eloquente discurso. Ele era um dos homens que fazia trabalho para seu pai e vivia cuidando da segurança da fazenda. Não gostava muito dele, pois achava totalmente desnecessária sua forma de agir.

              -- Acha mesmo que isso será preciso? -- A tenente questionou preocupada. -- Não devemos esquecer que a maioria das pessoas dessa cidade precisam de trabalhos e não há muitos aqui…

              -- Isso é besteira, logo ela vai embora e tudo voltará ao normal.

              Mel meneou a cabeça negativamente, seguindo ao lado do noivo para fora.

             -- Eu entendo Sir Arthur… -- Ele comentou. -- Não quero que fique aqui, é perigoso com essa Víbora por perto.

            -- E você acha que tenho medo? – Indagou irritada. -- Não é fazendo joguinhos ou sabotando-a, mas a farei pagar caro pelo que fiz, porém usarei a justiça para isso.

           -- Há tipos de pessoas no universo que não merecem a sua ética.

           -- Mas isso não muda quem eu sou, o fato de ela ser uma maldita e assassina pirata não pode me tornar alguém tão baixo.

            O rapaz assentiu a contragosto e logo seguiam de volta para a fazenda.






             -- Está desconcentrada, Mel!

            A voz de irritação de Cris não pareceu incomodar a tenente que se deitava no colchonete.

             -- Estou cansada!

             -- Todo dia você está assim… na verdade há quinze dias, desde que a Lacassangner veio para essas terras.

             A filha do duque não protestou, apenas ficou quieta, enquanto seus pensamentos pareciam perdidos.

             Sua mente era invadida dia após dia por lembranças daquela noite que a pirata lhe invadira os aposentos. Sentia-se culpada por tê-la ajudado, pois se não o tivesse feito, sua mãe ainda estaria viva. Pensava no plano que o avô criara e ficava a imaginar se deveriam realmente usar aquelas pessoas nessa guerra...

           

           

 

              Alguns trabalhadores cuidavam de limpar os terrenos para a plantação. Eliah tinha conseguido alguns peões em uma cidade vizinha, mas não tinha encontrado serviçais para cuidar da casa.

               O haras estava pronto. Inúmeros cavalos tinham chegado. Faziam parte da criação da sheika. 

            Os dias estavam sendo corridos. A mão de obra que contratara não dava conta de tudo o que tinha que ser feito. O administrador já fora várias vezes até ao povoado em busca de pessoas para trabalhar, mas fora rechaçado pela população.

            O pirata tinha visto quando Samantha deixara os aposentos, o sol ainda não tinha aparecido. Ela estava cuidando dos animais para tentar auxiliar nos afazeres que se multiplicavam.

            Passava das dezesseis horas quando a viu selar um dos animais.

               -- Vai sair? -- Eliah questionou. -- Não deve sair desprotegida, não esqueça o que falou a senhora Miranda.

            Samantha afivelava as cintas no garanhão negro. Aquele cavalo árabe fora um presente da esposa.

            Deu-lhe uma cenoura.

            -- Preciso ir até os limites da fazenda, alguns empregados me disseram que a cerca estava derruba. – Afagou a crina do espécime.

            -- Então vou contigo!

            A filha do Serpente esboçou um sorriso.

            -- Não vai acontecer nada, volto rápido, só preciso ver para planejar o reparo.

            Eliah sabia que a jovem era bastante teimosa, raramente ela era dissuadida do que se propunha a fazer.

                A Lacassangner montou.

                -- Prometo que volto logo e me cuidarei.

                -- O sol logo vai se pôr, cuidado, filha, por favor.

               Samantha apenas assentiu, saindo a todo galope, passando por sua porteira e seguindo pela estrada de terra.

                Aquela era a primeira vez que deixava a fazenda desde que chegara. Ficara bastante ocupada organizando os trabalhadores.

                Parou por alguns segundos observando as árvores que se organizavam pela margem da passagem. Conseguia ver as elevações mais alto nas charnecas. A estrada de barro tinha alguns declives que foram resultados das últimas chuvas que banhara a região.

            Era um lugar bonito para viver. Raramente ouvia-se sons de veículos. Naquela parte havia apenas três construções: Uma que ficava do outro lado dos pequenos morros, a sua e a do Santorini que fazia divisa com sua propriedade.

            Teria que começar a organizar o plantio, mas para isso teria que ter mais gente para executar o trabalho.

            Parou diante da elevação.

            Era possível ver o povoado pequeno no fundo.

            Ainda não fora até lá, mas logo o faria, assim que a Belinda chegasse, seguiriam até lá.

                Voltou a trotar e logo que passava em uma curva observou uma multidão de trabalhadores vindo com foices e enxadas. Vestiam roupas sujas e pareciam bastantes exaltados. Havia homens jovens, idosos, algumas mulheres e até mesmo criança.

            Diminuiu a velocidade e já se prepara para retomar a cavalgada, mas foi cercada imediatamente, ficando presa no círculo feito pelos presentes.

            Via em seus olhos o ódio e o desprezo por sua presença. Não se importava com a raiva que todos demonstravam, até poderia dizer que se sentia bem por não ter que se preocupar com os sentimentos bons de outrem, jamais conseguiria lidar novamente com isso.

             -- Nos poupou trabalho, pirata, assim não precisamos invadir suas terras para te matar. – Matias gritou. – Vamos fazer a justiça que nos negaram...

            A Lacassangner cruzou os braços.

            -- Ora… só faltou as tochas… ficaria bem mais medieval… -- Samantha desdenhou, enquanto olhava tudo ao redor. – Saiam da minha frente!

            A multidão aproximou-se mais.

            -- Ousa debochar da gente? -- Outro homem gritou. -- Cada uma dessas pessoas aqui tem um motivo para te odiar, afinal, grandes barbaridades fez no porto...

             -- Não fiz nada nesse porto, tampouco me interessa as loucuras de vocês.

 

 

             A tenente Olívia seguia em seu cavalo. Gostaria de ter saído com a moto, mas Marina tinha feito tanto escândalo que acabara aceitando a sugestão de passear com a égua.

            Há dias não conseguia se exercitar direito e já sentia as consequências, pois vivia se cansando com muita facilidade. 

             Puxou as rédeas para acelerar a montaria quando viu os gritos das pessoas, seguindo mais rápido viu a cena.

Sentiu um estremecer no estômago ao ver Samantha no círculo sendo ameaçada. 

           Há mais de um mês não voltou a vê-la, mas sabia que já tinha chegado ao povoado. Vez e outra ouvia os peões falarem sobre a presença da mulher, mas ainda não tinha tido a desagradável presença.

         Observava-a com atenção. Parecia não se intimidar diante de nada nem de ninguém, continuava montada em sua sela sem ao menos demonstrar desespero por estar sendo ameaçada por vários trabalhadores armados com apetrechos de trabalho.

         Viu-os aproximar-se de forma ameaçadora, fechando as saídas ao redor da pirata.

         Ouvia o coro que se desenrolava ao chama-la de víbora.

         Fitou os olhos azuis, parecia buscar algo que demonstrasse que havia um pouco de temor naquele momento, mas não encontrou nada.

         Pensou em dar meia volta e seguir para casa, porém o que se passara a seguir a impediu de fazer isso.

         Viu quando um dos homens acertou uma pedra na têmpora da filha do Serpente.

             -- Já chega, Matias, retire-se daqui com essas pessoas. – A filha do duque ordenou, aproximando-se.

              Samantha levava a mão à face quando viu a tenente chegar em seu cavalo branco. Via o porte de militar que se mostrava autoritária.

              Sentiu-se incomodada com a presença dela.

              -- Saiam daqui! – Mel voltou a ordenar. – Estão passando dos limites.

              O homem se virou para fitá-la, parecia contrariado.

              -- Perdão, tenente, mas é um assunto pessoal.

              -- Já disse para sair e levar essas pessoas consigo ou terão que enfrentar as consequências. – Ela bateu com o chicote na bota. – Se tem algum problema contra essa... – Encarou-a – essa pirata, faça uma queixa formal.

              -- Está defendendo a mulher que assassinou a sua mãe?

             Os olhos dourados se estreitaram de forma ameaçadora e logo o trabalhador saiu, mas antes dirigiu um olhar cheio de ódio para a Lacassangner.

               Samantha apenas observava o desenrolar de tudo sem nada dizer. Analisava a firmeza da filha do duque, a forma que agia. Com certeza era uma oponente a sua altura.

            Viu-a aproximar-se mais.

            Encantava-se com o formato e a cor dos olhos.

            Era muito bonita...

            Observou os trajes de montaria que usava. Não sabia que ela podia montar, afinal, estava usando cadeira de rodas quando a encontrara pela primeira vez.

               -- Se eu fosse você, Víbora, não andaria por essas terras se exibindo, ainda mais quando todos te odeiam.

             A Lacassangner ouviu o som bonito da voz carregada, fitou-a com atenção.

              Não tinha mudado muito, mas não era mais uma menina, era uma mulher que agia com bastante segurança, mesmo de forma orgulhosa e arrogante.

               Levou a mão à têmpora.

               -- Acho melhor, tenente, que controle essas pessoas, não acho que seria muito interessante ser associada a vândalos... Tem uma patente a zelar... Pelo menos eu acho que é assim...

              -- Vândalos? -- Ela repetiu, fazendo o cavalo chegar ainda mais perto. -- Cada uma dessas pessoas sofreu com ataques dos seus navios, então não venha querer culpa-las pelo desejo de te fazerem pagar por tudo o que fez. – Dizia enquanto segurava firmemente o chicote.

                --  E você e sua família usam esses  ignorantes para me atingir? –Questionou, encarando-a. – Sempre pensei que duques e o Sir fossem honrados...

               -- O que sabe de honra a filha de um pirata miserável? – Indagou por entre os dentes.

               A sheika retirou o lenço do bolso, limpando o sangue que corria da sua face.

              Mel observava o machucado. Tinha cortado o supercílio.

              -- Você gostaria de dar uma olhada no ferimento... É médica... Antes não era e já sabia fazer um ótimo trabalho.

            A face bonita da Santorini ficou rubra de raiva.

               -- Não lembro de ter te dado intimidade para que se dirija a mim desse jeito. 

               A Lacassangner esboçou um sorriso com um arquear de sobrancelha. .

               -- Ora, mil perdões, esqueci que é a comandante suprema da galáxia…

               Mel cerrou os dentes de raiva.

               -- Víbora, espero que essa ferida faça você perder essa cara de gente que não tem vergonha...

               Samantha a viu se afastar e teve a impressão que o perfume dela continuava lá.

               Meneou a cabeça, enquanto permanecia parada, observando-a.


 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A antagonista - Capítulo 25

A antagonista- Capítulo 22

A antagonista - Capítulo 21