A víbora do mar - Capítulo 4 - O acidente

 


Anos depois...

Um vento frio penetrava o pequeno apartamento através das cortinas diáfanas que adornavam as janelas de vidros. O prédio ficava em uma rua distante do centro da cidade. Era um lugar tranquilo, isolado. A fachada azul e vermelho destacava-se entre as modéstias casas. Havia uma pista de skate e um parque de reflorestamento, era um bom lugar para fazer um piquenique.

            A chuva começava a cair delicadamente. Já eram oito horas da manhã e o sol não parecia ter forças para brilhar naquele dia. Aquela época do ano sempre tinha um clima frio, muitos aproveitavam a cidade portuária para fugirem do calor das grandes metrópoles.

          A Santorini despertou depois de noite mal dormida.

                Olhou tudo ao redor como se não reconhecesse onde estava. Viu a TV exibindo um daqueles programas matutinos e sem graça. Ficara até tarde assistindo a um filme que conseguira chamar sua atenção, algo raro de acontecer. Não costumava ter tempo para essas diversões, estava sempre muito ocupada com o curso de medicina. Vivia interna na marinha.

                Pegou o controle do aparelho televisivo e saiu em busca de um programa que não ensinasse a cozinhar usando as sobras da refeição do dia anterior, tampouco queria ver pessoas malvestidas ensinando outras pessoas a se vestirem.

                Entediada, jogou fora o controlador.

                Sentia-se tão exasperada que apenas desejava voltar a dormir. Cobriu a cabeça com um dos travesseiros macios.

          Cumpria uma semana de suspensão, pois infringira uma norma de conduta.

         Virou-se de lado, jogando os lençóis que se enroscavam em seu corpo.

          Ainda estava furiosa por ter sido penalizada apenas por buscar pela mulher que destruíra a vida da sua família.

Esses sete anos foram apenas para alimentar cada dia mais o arrependimento por ter acolhido a pirata em seu quarto, por ter cuidado dela, quando o que deveria ter feito era entregá-la ao avô. Sempre que despertava pela manhã esse era seu primeiro pensamento. Se tivesse agido como deveria, sua mãe não teria sido assassinada cruelmente.

Ainda conseguia ver a moribunda sobre seu leito, ainda conseguia ouvir seus gemidos doloridos... Chegara a acreditar que a fora da lei não era tão má como todos a acusavam...

Fechou as mãos com tanta força que sentiu as unhas ferirem sua pele.

Sentia o ódio consumi-la a cada respiração...

                Não descansaria, não sossegaria enquanto não vingasse e fizesse aquela maldita mulher pagar por tudo o que fez.   

                Buscava-a incansavelmente dia após dia, seguia pistas que eram dadas, contratara detetives para seguir os rastros da filha do sanguinário serpente, entretanto era como se Samantha Lacassangner tivesse sido tragada para o inferno.

                   Odiava a Víbora do mar, odiava-a como nunca imaginara ser possível odiar alguém.

                Ouvia as freiras do convento tentado dissuadi-la do seu intento, do padre afirmando-lhe que cometia um grave pecado por estar a buscar vingança... Nada disso importava, pois há tempos sentia que sua alma tinha sido condenada.

                     Quando fechava os olhos vinham em sua mente a imagem dos olhos azuis cruéis, das ameaças que fizera… do corpo da mãe banhado em sangue.

                    "Com os cumprimentos da Víbora do mar."

                   Essa frase era um mantra amaldiçoado em seus ouvidos…

                    Estendeu a mão e pegou o porta-retrato.

                   Acariciou a moldura.

                   O sorriso da duquesa era o mais doce que um dia tinha visto em sua vida. Era gentil, amável, sempre fora maravilhosa em sua forma de agir e tratar a todos. Um ser que sempre se importara em servir aos outros.

                    Ainda se recordava do velório, das pessoas que se aglomeraram para dar o último adeus, as lágrimas dos que mesmo não convivendo com ela, amavam-na.

                  Ouviu o telefone tocar, mas não se preocupou em atender.

                 Preferira ficar no apartamento que na casa do país ou do avô, evitara falar-lhes, pois não estava interessada em broncas.

                Viu o anel de diamante que repousava em seu anelar direito.

                Estava noiva de um dos homens mais poderosos do país, Juan Bragança.

                O prometido administrava algumas multinacionais que produziam transatlânticos, passava muito mais tempo fora do país, pouco se viam, pois Mel não gostava de seguir até a capital com frequência, então ele quem seguia para vê-la.

                Em pouco menos de dois meses casar-se-iam, entretanto já deixara claro para o empresário que isso não influenciaria nos seus planos de fazer a pirata pagar por tudo o que fizera. Sossegaria apenas quando a visse diante de um tribunal, quando a visse ser julgada por todos os crimes que cometera, sendo condenada ao resto da vida nas paredes frias de um presídio.

                 Novamente o toque insistente, mas agora era o celular. Ao visualizar o visor viu se tratar da Cristina, sua única amiga e companheira na marinha.

                Decidiu atender.

                – Mel, te liguei inúmeras vezes, já estava quase indo até aí.

                 A filha do duque apenas relanceou os olhos, ouvindo-a continuar.

                    – Não esqueça que deve se apresentar no campeonato de esgrimas hoje.

                   – Pensei que o capitão também tinha me excluído disso. – Falou com desinteresse.

                     – Claro que não, o seu nome já foi anunciado.

                      Ela deixou os aposentos e seguiu para a pequena cozinha do apartamento. Abriu a geladeira e tirou uma jarra de suco, colocou-o sobre a mesa e encheu o copo.

                      Ouvia a amiga falar sobre a importância de ela representar o país no campeonato e que seria uma falta grave se não o fizesse.

                       Bebeu o líquido devagar, estava pensativa, pouco ouvia o que a interlocutora dizia.

                  O pai e o avô com certeza estariam no evento para prestigiar sua apresentação, não podia simplesmente deixar de comparecer, mesmo que essa fosse sua única vontade naquele momento. Não desejava sair do apartamento, não queria ver ninguém.

                               Voltou ao refrigerador, retirando um sanduíche. Colocou-o no micro-ondas e depois de alguns segundos estava pronto para ser devorado.

                -- Você está me ouvindo? – Cris questionou ao ouvir apenas a respiração entediada da outra.

                Queria apenas encerrar a chamada, esquecer as responsabilidades, mas não era tão simples assim, tinha um nome para prezar.

                Soltou um suspiro de resignação.

                    – Está bem, vou me arrumar… – Disse por fim

                    – Passo aí dentro de meia hora para a gente seguir até o ginásio.

                    Mel apenas soltou um “ok” inaudível e deixou o celular de lado, sem mesmo se importar se a conversa tinha sido terminada.

                Deu apenas uma mordida no lanche e foi até o quarto que usava para guardar alguns objetos importantes. Na verdade, tinha transformado o quarto que não era ocupado em um espaço de treino. Lá havia os troféus e medalhas que ganhara durante os anos participando dos campeonatos de esgrimas.

                Seguiu até a espada que fazia parte da família há gerações.

                Pela primeira vez naquela longa e sombria semana, um sorriso foi desenhado em seus lábios.

                Era uma das melhores espadachins do país. Seu nome era reconhecida até mesmo internacionalmente.

 

               

 

                Uma das prisões mais antigas e seguras do mundo moderno ficava sobre um grande monte. Toda feita com concreto ciclópico, exibia grandes muralhas, algo que de certa forma era até desnecessário, pois a única forma de deixar aquele lugar era de helicóptero.

                As ondas batiam violentamente contra as pedras, mas os que viviam naquela terra não pareciam se importar com esse detalhe. Aquela fortaleza era a residência das mais perigosas criminosas. As visitas ocorriam de maneira esporádica, pois poucos atreviam-se ir até ali, devido a isso, quinzenalmente havia a oportunidade para que as detentas  falassem com seus parentes por telefone.

                – Sempre que há um problema nessa penitenciária, a senhora está envolvida. – O diretor do presídio de segurança máxima dizia fitando a mulher. – O que pretende? Desde que chegou aqui vive na cela de castigos.

                    Samantha levantou a cabeça, encarando o homem. 

                      O rosto bonito não exibia nenhum tipo de emoção. 

                       Há quase cinco anos fora condenada por um crime contra um dos únicos ser do universo que fora importante para si.

                               Nunca conseguira recordar o que tinha ocorrido naquela noite na fazenda de Laura, sua esposa, apenas despertara e vira o corpo ensanguentado da amada, enquanto suas vestes traziam o sangue e a arma do crime ao seu lado. Em seu íntimo sabia que jamais teria machucado aquele maravilhoso ser que entrara em sua vida, porém não havia pistas, não havia suspeitos, apenas ela...

                          Não ligava em ficar naquele lugar, até mesmo abrira mão da defesa, pois não haveria motivo nenhum para viver no mundo lá fora.

                      – Vai ficar calada? – O homem questionou impaciente. – Defenda-se, negue que tenha participado dessa briga. – Disse apoiando as mãos sobre a escrivaninha. – Senhora Segabinazi, precisa entender que esse presídio não é um parque de diversão, essas pessoas que estão aqui não são freiras, então comece a reagir ou não vai durar aqui dentro.

                       Augustos era diretor daquela construção. 

                       Acompanhara todo o julgamento daquela mulher que se mantivera em silêncio por todo processo, falando apenas para abrir mão da defesa técnica. Quando chegara ali, agira do mesmo jeito. Não falava, apenas estava em alguma parte daquela estrutura como se fosse impassível a tudo ao seu redor. Era uma jovem muito bonita. Alguns diziam que aproveitara da solidão da sheika para seduzi-la e depois matá-la, ansiando ficar com seu dinheiro e poder, porém não conseguia acreditar nisso, via uma dor tão grande naquele olhar, mesmo que ela tentasse esconder na maioria das vezes.

                     – Quanto tempo vai passar no isolamento? 

                Samantha cerrou os dentes.

                Queria apenas ser jogadas na minúscula cela, ficando isolada de tudo e todos.

                        – Apenas faça a sua parte e me mande para lá novamente. – Respondeu calmamente.

                        – Senhora, precisa reagir, seu caso foi reaberto, há dúvidas que nunca foram esclarecidas sobre o crime da Sheika. – Disse fitando-a. – Não se sente feliz por isso? Pode ser inocentada, pode ir embora desse lugar e viver a sua vida.

                Vida?

                Samantha sentiu vontade de gargalhar diante do discurso do diretor.

                Em todos aqueles anos nunca tivera uma vida. Era filha do Serpente do mar, era reconhecida por todos em seu país como uma sanguinária assassina...

                Um dia chegara a pensar que haveria felicidade para si, que teria uma pessoa que a amasse, que estariam juntas, mas fora mais uma ilusão... Tudo escapava por suas mãos...

                Os olhos azuis não exibiram nenhuma emoção.

                         – Vou ligar para o seu advogado. – Augustus disse em total decepção.

                       O diretor fez um gesto para as guardas levarem a detenta.

 

 

               

                   Mel ostentava sua maestria com a espada, enquanto os presentes vibravam diante do talento da herdeira do duque.

                    A jovem dedicava seu tempo livre em exercitar seu esporte, buscando sempre a perfeição em seus movimentos.

                    Fernando vibrava na arquibancada ao lado de Sir Arthur.

                   – Eu sempre soube que a minha filha seria vencedora. – Deu um gole na bebida. – Não aceito nada menos que o melhor para a tenente.

                     O Almirante apenas fez um aceno com a cabeça. Fumava seu charuto e observava a neta.

                    Olhava-a e percebia como tinha mudado nos últimos anos. Como se fechara em seu interior e alimentara o desejo de vingança. Sempre quisera que Mel fosse mantida longe dos conflitos, nem mesmo concordara que servisse a marinha, mas depois da morte de Marie, fora o que decidira fazer. Seguia os passos da jovem, fazia-o para que não se envolvesse em problemas por sua busca cega por Samantha Lacassangner.

                A filha de Iraçabeth era uma maldição em sua vida. Mesmo com o passar dos anos e o desaparecimento da pirata, era como se continuasse presente naqueles mares, como se continuasse a representar uma ameaça para todos que viviam naquele lugar.

                Recordava-se do dia que a descobrira nos aposentos de Mel. Nunca confrontara a neta quanto à decisão de ajudar a arqui-inimiga da família, nunca entendera os motivos da tenente, na época uma simples adolescente, ter acolhido sob seu teto a filha do Serpente.

                Condoera-se da dor da fora da lei?

                Não gostava de pensar nessa possibilidade.

                Observou o movimento certeiro da espadachim ao conseguir jogar para longe a espada do adversário, coroando assim sua vitória.

                Viu o duque ser cumprimentado pelo alto escalão da marinha.

                Observou Mel retirar a máscara de proteção facial e os cabelos castanhos claros se soltaram do coque.

                Era linda!

                Viu-a fazer um cumprimento, depois deixar a pista sem falar uma única palavra.

                Soltou um longo suspiro.

                -- Consegui tornar a minha filha a melhor! – Vangloriava-se Fernando.   – O que poderíamos desejar? – Sentou-se. – Em poucos dias vai se casar, está terminando o curso de Medicina… não há ameaças…

                 – Não esqueça que a mesmo que diga que não existem ameaças, não é isso que vemos quando se trata da Mel. Ela busca incansavelmente pela Víbora do mar, vive em função disso. – Retrucou calmamente.

                O Del San Torro estreitou os olhos de forma ameaçadora.

                  – O senhor disse que tinha dado um fim a bastarda da pirata.

                     – Sim, fiz, mesmo assim ela continua buscando por ela, usando seu acesso para encontrar pistas… foi suspensa por ter acessado documentos que não eram para serem lidos, tampouco tocados... – Encarou o genro. – A Lacassangner vive um castigo que nunca terá fim, porém parece que a sombra dela ainda é uma maldição na nossa vida.

                    Fernando inquietou-se. 

                   – Quando casar com Juan tudo isso vai acabar. Primeira coisa que deve ter é um filho, assim deixará essas ideias... Já disse para ele para levar para longe, que se dedique ao marido, que tire da sua cabeça essas ideias... Não há mais Víbora do mar para ela.

                      Arthur não acreditava nisso, conhecia bem a neta, tinha bastante convicção e não costumava desistir dos objetivos, porém para encerrar o diálogo desgastante, fez um gesto de assentimento com a cabeça.

 

 

 

                 

         O cheiro de maresia se misturava a gotas que ganhavam mais força.

         As ruas estavam vazias. Era um feriado prolongado que logo chegaria ao fim. As pessoas estavam dormindo em suas casas ou aproveitando todo tipo de diversão. Na noite anterior ocorrera vários shows em praça pública, sem falar nas boates que ainda continuavam abertas.

            A máquina que estava sobre o asfalto não estava sendo usada em sua potência máxima. A motocicleta japonesa que chegava a mais de trezentos quilômetros por hora estava seguindo lentamente. A pilota parecia interessada em admirar a orla que já se aproximava.

                Seguiu por uma rua transversal e já adentrava uma área militar. Apagou o farol, diminuindo ainda mais a velocidade.

                Aproximando-se da guarita, viu os homens fardados com armas, parou o veículo, tirando o capacete preto.

                Como de costume os cabelos soltaram-se da ataca que usava.

               O soldado viu a tenente Olívia Del San Torro em sua roupa de couro negra. 

               Não havia alguém que não se encantasse com a beleza da neta de Sir Arthur.

               Altura mediana, os cabelos castanhos claros, os olhos de um dourado raro.

               -- Bom dia, tenente! 

               A voz masculina cumprimentou com um sorriso gentil.

                 -- Vai me manter parada aqui ou permitirá a minha entrada? – Ajeitou-se melhor na moto, apoiando o capacete na coxa. -- Se me atrasar, a culpa será sua…

               O rapaz de forma atrapalhada fez uma reverência.

               -- Perdão. -- Apressou-se em liberar a cancela.

              Olívia piscou divertida, voltando a colocar a proteção na cabeça, seguiu pela passagem arborizada.

               Estava voltando dos quinze dias que tirou de férias.  Precisara se ausentar, pois tivera que se dedicar aos preparativos do casamento que aconteceria em uma semana. Retornava para deixar em ordem e organizado todo o trabalho, pois partiria em lua de mel e demoraria para retornar já que sua licença fora aceita. Afastar-se-ia durante alguns meses para poder se organizar na vida de casada.

             Estacionou a moto e viu o enorme navio.

            Retirou o capacete, depois colocou os óculos escuros.

             Nos últimos meses tentava manter a disciplina para que não fosse mais uma vez penalizada, mesmo assim se sentia inquieta, pensando se nos dias que estivesse fora houvesse alguma pista da mulher que perseguia incansavelmente.

                Suspirou exasperada!

                Pensara em adiar o matrimônio, ainda mais com a prisão de um cartel que monopolizava o mar do norte, talvez eles tivessem algumas notícia sobre a Lacassangner.

                Passou a mão pelos cabelos, arrumando-os.  Olhou o relógio dourado depositado em seu pulso.

             Estava cedo, ainda tinha tempo para se vestir e seguir para alto mar. Naquela manhã seguiria com o capitão, iriam até o hospital de campanha.

             Observou os marinheiros organizando a partida, alguns as cumprimentaram, mas não se aproximavam.

              Seguiu até o píer. Caminhava lentamente, sentindo a chuva cair mais forte em suas vestes de couro.

              Há mais de sete anos quando seguiu aquele caminho não imaginara que tudo seria assim. Deixara a escola de freira para fazer a prova para a Marinha, obcecada por seu desejo de fazer alguém pagar por tudo de ruim que tinha feito àquela terra e mesmo nos dias atuais, não descansava, enquanto não o fizesse.

               Soltou um longo suspiro e ouvindo passos, virou-se.

               Viu o capitão se aproximar. 

                Conhecia-o desde que entrara lá, ele sempre lhe trazia notícias e ajudava-a em sua missão.

              -- Há uma pista, tenente, acho que a senhorita deveria aproveitar esse momento para montar uma boa equipe… não haverá outro momento assim em anos…

              Os olhos grandes brilharam em entusiasmo.

                Esperara muito por aquele momento. Se realmente existisse uma pista concreta, não desistiria.

 

             

               Uma semana depois as buscas continuavam. A fragata tinha sido pega em uma emboscada, sendo afundada e sua tripulação morta, alguns feridos e a tenente Del San Torre estava desaparecida.

                 -- Vocês não pararão as buscas até que tenham a minha neta aqui.

                Sir Artur esbravejava, enquanto o duque falava com os comandantes, traçando planos para as novas equipes de buscas que sairiam.

                Todos corriam de um lado para o outro. Alguns corpos jaziam sobre assoalho dos navios, estavam cobertos e a tristeza imperavam entre os companheiros que os conheciam.

                A cidade portuária estava em luto, o sino da igreja badalava incansavelmente para chamar os fiéis para comparecerem à missa, rezavam com afinco para que a dor das famílias pudessem ser amenizadas.

                Ouviram gritos e logo todos corriam para ver o bote que retornava.

                -- Encontramos  a tenente, encontramos a tenente…

               Os marinheiros repetiam, enquanto o entusiasmo e apreensão se apossava de todos, temiam algo pior que o desaparecimento…

              Logo outros marinheiros seguiram para auxiliar os outros e não demorou para chegarem ao navio.

              -- Ainda tem sinais vitais… -- O médico avisava. -- Vamos imediatamente para o helicóptero, precisamos chegar ao hospital.

              Sir Arthur e o duque seguiram ao lado do médico que já iniciava os primeiros socorros.

                A Del San Torre estava tão pálida que parecia que a vida não existia mais em seu corpo.

               Não seguiram para a aeronave imediatamente, pois a militar teve uma parada cardíaca. Os paramédicos tiveram um enorme trabalho para conseguir estabilizar.

               -- Fique com a gente, Olívia, você lutou muito, não desista agora. -- O médico repetia.

               O pai da jovem observava tudo apreensivo, mas não parecia tão perturbado quanto Arthur.

              -- Se ela não fosse tão teimosa e obcecada, nesse momento estaria indo para a lua de mel e não aí lutando para sobreviver.

            -- Você não parece muito preocupado! -- Arthur o acusou. -- Talvez se a mãe dela  não tivesse sido morta e você não tivesse colocado culpa na pirata, ela nem estaria na marinha, você alimentou esse ódio.

           O duque segurou o mais velho pelo braço, abaixando o tom de voz.

            -- Se o senhor não deixasse a Mel fazer tudo o que sempre desejava nada disso teria acontecido, mas o senhor sempre permitiu que ela agisse da forma que queria, aí está o resultado.

           O duque se afastou sem nada mais a dizer.

 

 

 

              Os médicos seguiam confiantes com a recuperação da tenente, mesmo o estado de coma da jovem não sendo controlado por eles.

           Quando fora encontrada na praia, devia ter estado desacordada durante todo o tempo, pois se fosse o contrário, não teria tido tanto dano.

            Desde o translado até o hospital, ela não tinha despertado e agora já passando três meses, havia o medo de ela não retornar, mesmo seus órgãos funcionando perfeitamente.

               Naquele momento ela estava na sala fazendo exames. Os neurologistas observavam alguns resultados e pareciam preocupados.

               -- Temo pelas consequências da falta de oxigênio no cérebro da Santorini… fisicamente está tudo bem, mas não sabemos as sequelas que irá apresentar quando acordar.

               A médica que trabalhava na marinha acompanhava todo o processo. Aproximou-se da jovem.

              -- Ela é uma mulher muito forte, acredito que poderá superar tudo isso…



              Três anos depois…

              A cela estreita da penitenciária de segurança máxima ficava sobre um topo de uma montanha. A única forma de deixar aquele lugar era se jogando no mar, correndo o risco de morrer ao se chocar com as pedras ou ser devorada por um dos tubarões que habitavam aquelas águas.

              Samantha estava deitada sobre o leito estreito. Havia uma porta tão pesada que a prendia ali, tendo apenas uma pequena abertura pela qual lhe entregavam a comida.

              Há dez anos estava ali, pelo menos se sentia bem ao ouvir o som do mar batendo nas rochas.

               Deixou o livro que estava lendo de lado, enquanto cobria os olhos com o antebraço.

                Desde que chegara àquelas terras sua vida mudara. Primeiro conhecerá uma mulher maravilhosa, depois o destino cruel a tirou de si.

               Não se importava mais em estar presa, não havia mais alguém fora daquelas paredes frias a lhe esperar…

                Cerrou os dentes tão forte que sentiu o maxilar doer.

                Sentou-se.

                Começava a acreditar que realmente fora amaldiçoada por ter nascido em dia de tempestade e ainda por cima ter sido responsável pela morte da mãe.

                 Ainda ouvia a voz doce da esposa a repreendendo por pensar algo assim.

                Abriu o livro, retirando de lá a pequena foto que trazia consigo sempre.

                O sorriso doce, a pele que tinha cor de canela, os olhos tão negros como a noite.

               Laura era uma Sheika, herdara o título do marido, casara com um homem que tinha idade para ser seu avô e não demorou para ficar viúva e fora em uma feira onde a pirata estava sendo negociada, como foram as ordens de Sir Arthur, que a conheceu.

                   Ouviu o trinco da porta ser destravado por fora e lá estava uma das guardas que cuidava da segurança.

                -- Você tem visita!

                Os olhos azuis se estreitaram em desconfiança. Ninguém aparecia ali, ainda para visitá-la, até mesmo o advogado tinha desistido de ir tão longe para não obter nenhum resultado.

                -- Quem é?

                -- Não sou sua secretária, quer saber de quem se trata vá até lá.

                A Lacassangner respirou fundo.

                Há mais de três meses sempre havia alguém que ia até o presídio para vê-la, porém nunca aceitava ir até lá, mas agora a curiosidade começava a incomodar. Quem poderia ser? Nem mesmo as pessoas que tinham família iam até ali, quem iria visita-la?

                Eliah?

                Poderia ser o velho pirata?

                Há tantos anos não sabia nada dele. Buscara-o quando estivera ao lado da esposa, porém parecia que o bom homem tinha sido tragado pela terra.

                Soltando um longo suspiro, levantou os braços para ser revistada, em seguida lhe foi colocado as algemas, era protocolos para deixar a cela.

                – Achei até estranho você está aqui e não na solitária como é de costume.

                Samantha nada disse, ficando apenas quieta.

                Caminhava pelo corredor estreito daquele lugar escuro. O chão era de pedra, parecia tão impenetrável como todo o resto.

                Havia poucas presas ali, mas todas eram considerados perigosos e por isso ficavam isolados naquela ilha.

                Seguiram por mais alguns segundos até chegarem a uma porta grande, havia duas guardas lá e mais uma vez foi revistada e logo penetrava no espaço, não era tão escuro como o resto do presídio.

                Viu uma mulher alta de cabelos loiros, usava terninho preto. Devia ter uns cinquenta anos, era bastante bonita e exibia uma expressão gentil.

                Ela não levantou ao ver a prisioneira e esperou que ela se acomodasse.

                -- Ora… não sei se a chamo de pirata ou de sheika… -- Disse com um sorriso. -- Samantha Lacassangner… a jovem pirata dos sete mares… Estou muito feliz por minha insistência ter sido recompensada.

                 A neta rejeita de Sir Arthur apenas olhava a visitante.

                -- Não tenho tempo para jornalistas… -- Já levantava. – Se deseja uma história, apenas faça as suas pesquisas nas redes de internet.

                A visitante meneou a cabeça negativamente.

                Era compreensível a rejeição pelos profissionais da comunicação, afinal, ela fora condenada por eles.

                Até pouco tempo via a jovem apenas como a possível assassina de uma poderosa mulher. Mas nos últimos anos as investigações avançavam e não demoraria para que a mulher com um olhar desdenhoso a sua frente fosse inocentada do terrível crime que chocara o país. Entretanto seu interesse não tinha a ver com aquele fato, mas com a descoberta de que a esposa de Laura Segabinazi era a conhecida Víbora do mar, isso sim fora algo surpreendente e interessante.

               -- Não sou jornalista…nem escritora… – Mostrou-lhe um cartão – sou a chefe do departamento de defesa internacional de investigação de crimes marítimos…

                A filha do Serpente cruzou os braços.

                -- E o que isso me importa? Estou pagando meus crimes… já fui condenada… -- Disse com olhar implacável. – Se tiver mais crimes a acrescentar, fique a vontade. – levantou-se.

               -- Meu nome é Miranda Maldonado. -- Apontou para que ela sentasse. – Quero conversar contigo e acredite, foi um grande sacrifício conseguir essa audiência, levando em conta que não aceita nenhuma visita.

               -- Não me interesso por nada!

               A pirata já seguia para porta quando se deteve ao ouvir a frase.

               -- Sir Arthur fez tudo para manter longe a neta bastarda… mas o interessante é que fez questão de guardar sigilo sobre o fato de você está cumprindo pena em um país tão distante… Por que será? Será que ele sabe que você foi acusada de assassinar a própria esposa?

               Samantha olhou sobre o ombro.

               -- Você foi condenada por crimes que não eram seus… sabemos disso… mas ser pirata não é muito bem visto na nossa sociedade... porém tem sorte de não estarmos na época que penduravam os ladrões do mar com uma corda no pescoço… Você não matou a Laura… – Dizia pensativa. – Porém está há muito tempo nesse lugar, aceitando um crime tão cruel, ainda mais contra alguém que você amava…

                A pirata ouvia as frases em silêncio.

                – Você está aqui, mas o verdadeiro assassino está lá fora… A morte da sua esposa não foi julgada, pois uma inocente paga…

                 -- O que a senhora quer? -- Aproximou-se.

                 -- Você é muito inteligente… não só isso, se não tivesse se entregado, jamais teria sido pega… claro, se não tivesse se deitado com a mocinha da cidade grande…

                -- Como sabe de tudo isso? -- Indagou com desconfiança.

                Ela sabia de Ester?

                Há quantos anos não se recordava da mulher que lhe entregara ao avô?

                -- Eu também sou muito inteligente… -- Voltou a apontar a cadeira. -- Sente-se, sheika, temos muito que conversar.

                -- Não desejo conversar, não sei o que deseja e não me interessa… e eu não sou Sheika…

                Miranda a olhava com admiração.

                Conhecia bem a história da Lacassangner. Acompanhava cada passo que ela dava, como era perseguida pela Marinha do país vizinho, como conseguia se desvencilhar… Conhecera o pai da jovem, sabia como ele fora injustiçado… Mas nunca imaginara que ela estivesse viva, a víbora camuflara-se sem deixar pistas...

                 -- Nem se o que quero te propor te tire desse buraco?

                 -- Acredite, senhora, não me importo de passar o resto da minha vida aqui. -- Chamou a guarda. -- Leve-me para minha cela.

                 A chefe do departamento de defesa internacional apenas fez um gesto afirmativo, enquanto observava a orgulhosa pirata sair.

                 Sabia que não seria fácil convencê-la, mas tinha uma carta na manga e jogaria.

 


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