A dama selvagem - Capítulo 33
O sol raiou esplendido em sua magnitude.
Nem parecia que uma tempestade furiosa devastara a floresta, assustando seus
habitantes que precisaram buscar abrigos seguros.
Os pássaros cantavam felizes. Pareciam
prontos para o novo dia que se iniciava.
A terra estava molhada e um grupo de
caça e pesca já tinha deixado o aconchego das ocas.
Tupã estava sentado sobre um tronco.
Como chefe da tribo, despertava sempre muito cedo, buscando se manter em
contato com os espı́ritos da floresta.
Não estava se sentindo confortável,
ainda mais pelo fato de se sentir cobrado por Piatã e por todos. Fitou o verde
e não demorou para os tambores começarem a soar anunciando o novo dia.
Viu as crianças seguirem com as mães em
direção aos trabalhos diários. Suspirou alto.
Sua volta para casa fora adiada pela
chuva da noite passada, mas não passaria mais uma lua na tribo do pajé. Ainda
estava irritado com a insistência do velho em fazê-lo seguir no resgate da
Calligari.
Não moveria uma palha para salvá-la do
destino que ela mesma escolhera ao assumir sua identidade de branca. Fechou o
punho ao lado do corpo.
Quando descobrira que eram irmãos, na
época já adolescente, ficara encantado com a ideia, mas ao ouvir Uracan
narrar as barbaridades de Alexander e do exército que devastara grande parte
da sua tribo, sem falar que levara consigo a sua mãe, deixando o bebê Tupã
sozinho e sendo criado pelo tio, pois seu pai fora morto pelos homens do
general o enfureceu.
Passara a vida ouvindo aquilo do
tio-pai, passara cada lua sendo bombardeado pelo desejo de poder destruir e
submeter Diana ao seu poder, mas a morena era mais selvagem do que todos os
ı́ndios juntos e jamais baixara a cabeça diante de quem quer que fosse.
Fechou os olhos durante alguns segundos.
Lembrou-se do tempo que passara na
cidade e fora naquela época que seus laços se estreitaram com a irmã. Tinham
quase a mesma idade, eram crianças e se encantara com a garotinha de pele
bronzeada e cabelos negros como ébano.
Uma lágrima saiu dos seus olhos ao lembrar
da mãe... Ela fora morta por culpa da sua relação com os brancos... Se a
Calligari não tivesse nascido, tudo poderia ter sido diferente...
Urucan a matou de forma tão cruel
acusando-a de traidora... Provando diante de todos que seu povo correria perigo
se aquela relação entre culturas tão diferentes fosse alimentada.
Cerrou os dentes tentando conter a
angustia.
Se tivesse na tribo teria evitado...
Todos votaram a favor da morte... Menos o pajé que cortara laços com todos
depois disso.
Viu uma criança correndo... Lembrou-se
da irmã...
Estaria fazendo a mesma coisa com a pintora
apenas por um ciúme doentio... Tudo isso era fruto do fato de sempre ter se
sentido uma segunda opção?
Fitou a oca que fora destinada a si.
A bela companheira deveria estar a
dormir ainda...
Odiava pensar que Sirena na
adolescência se apaixonara pela morena selvagem, odiava imaginar que fora
traı́do... Não, não iria se arriscar por ela...
Diana sentia os braços cansados.
Seu corpo estava quente, passara toda a
noite sob a chuva forte e em certo momento teve a impressão que não
aguentaria o frio.
O tronco se mostrava bastante firme,
mesmo diante da tempestade não cedera diante do seu peso que tivera momentos
que não suportara mais.
Sua boca estava seca, estava com fome e
temia que suas forças não durassem muito.
Mirou uma das mulheres se aproximar com
um copo de água. Fitou-a, enquanto o precioso lı́quido era colocado em seus
lábios. A loira sorriu em simpatia e logo se afastou.
Precisava comer algo também, porém
não acreditava que isso lhe fosse dado.
Fitou a barraca onde Aimê deveria estar
naquele momento e desejou vê-la, desejou abraça-la novamente e sentir os doces
lábios sobre os seus como na noite anterior.
Ouvi-la confessar novamente o seu amor
lhe deu mais forças para seguir em frente e mais vontade de sair dali com vida.
Fitou o céu, sentindo-o queimar sua
pele. Agora o sol já estava brilhando e mesmo assim sentia os ossos enregelados.
Viu o segurança se aproximando de si.
Cerrou os dentes para evitar que batessem.
Pelo menos a roupa já estava seca e sua
blusa fora colocada novamente, mesmo que isso tenha sido feito para machucar
suas costas feridas, sentia-se grata.
-- Como se sente em estar amarrada como
uma selvagem... Coisa que você é e sempre será... Mesmo sentindo o
mal-estar, Diana exibiu um sorriso.
-- E você é o que mesmo? Ah, sim, um
capanguinha estúpido que logo vai morrer. O homem tirou a arma da cintura,
apontando para a face da Calligari.
A pintora não pareceu se assustar com
aquilo, apenas arqueou a sobrancelha esquerda em provocação.
-- Você não fará isso... Tem medo que
o Crocodilo arranque sua pele... E não acredito que ele te colocaria em um
tronco, como está fazendo comigo, isso é apenas para os convidados Vips.
O guarda-costas ficou rubro de raiva,
engatilhando a arma.
-- Passa-se por dama da alta sociedade,
mas não passa de uma selvagem... Um ser primitivo que recebera camadas de
verniz do poderoso Alexander, mas que não funcionara muito.
-- Bem, isso é o charme... Ser selvagem
enlouquece os homens e principalmente as mulheres... – Debochou. – E você é o
que mesmo?
O homem ficou tão irritado que bateu
forte na cara da morena, que só não foi ao chão porque estava com as mãos
presas no alto.
O maxilar da pintora enrijeceu.
-- Você bate em mulheres amarradas... –
Meneou a cabeça. – E' tão covarde quanto o seu pai.
-- Ah, então você lembra dele... –
Tirou a faca da cintura e encostou a lâmina fria em seu pescoço. – Ele odiava
você...
Dizia que não tinha nenhum mérito...
Mais uma vez a pintora arqueou a
sobrancelha em sarcasmo.
-- Quando você morrer eu vou transar
com a sua querida Aimê sobre seu sangue... Delı́cia... Vamos ver se sua alma
vai voltar do inferno para me assombrar. – Gargalhou de forma cruel.
Diana o viu se afastar e desejou
matá-lo com suas mãos. Não permitiria que ninguém tocasse na esposa...
Puxou os braços, mas apenas conseguiu se ferir com as correntes que a mantinham
atadas ao tronco.
Aimê estava sentada na cadeira.
Não dormira nada, sua cabeça doı́a das
lágrimas que derramara durante toda a noite ao imaginar a pintora na chuva, no
frio...
Quisera ir até ela novamente, mas
Alanna não permitiu, dizendo que a ajudaria, mas que não deveriam se arriscar
mais daquele jeito, pois quem sofreria um castigo maior era a major.
Cobriu o rosto com as mãos
Precisava pensar em um plano para tirar
a pintora dali, pois sabia que cedo ou tarde ela não suportaria todos aqueles
maus-tratos.
Ouviu passos e não demorou em ver o
odioso bandido adentrar o pequeno espaço.
Ele olhava tudo com atenção, parecia
procurar por algo, talvez temesse que a filha de Otávio tentasse uma fuga.
-- Bom dia, princesa! – Aproximou-se. –
Está pronta para continuar a demonstrar o seu amor a sua amada? – Ironizou.
Aimê se levantou irritada.
-- Eu não sei por que ainda perde tempo
com essa situação... Não entende que a Diana não precisa passar por isso...
Já me tem, estou disposta a ir para
onde quiser, fazer tudo o que ordenar e jamais me rebelarei, mas deixe que a
major vá embora.
Crocodilo se aproximou, segurando-a pelo
braço de forma brusca.
-- Ela não irá embora... Mas se não
deseja continuar com o que começamos, poderei fazer eu mesmo ou o segurança...
Ele deixou uma bela marca no rosto da sua enamorada.
Os olhos azuis se abriram em pavor e em
raiva. Livrou-se do toque do homem com um safanão.
-- Falou que não a machucariam... Me
prometeu... Estou fazendo o que me pede, chicoteei-a para sanar seu desejo doentio...
O traficante voltou a se aproximar,
alisando o rosto da jovem, passando pelos cabelos lisos.
-- Bem, o rapaz é impetuoso,
aconteceu... Mas se você continuar fazendo o que mando, apenas será você a
feri-la...
A Villa Real virou a face para se livrar
das mãos que cheiravam a morte.
-- Você quer matá-la aos poucos...
Ontem a deixou nessa chuva... Nem mesmo a alimentou...
-- Poupe-me disso... acha que isso é
capaz de matar a major? – Chutou a cadeira. – Essa desgraçada tem pacto com o demônio...
Já a vi desmaiar de tanto ser espancada e continuou viva... Por isso tudo tem
que ser feito com muito cuidado ou ela volta do inferno...
Aimê ficou horrorizada com o que ouvia,
partindo para cima dele. Ele conseguiu dominá-la com facilidade, empurrando-a.
A Villa Real cambaleou, mas conseguiu
recuperar o equilı́brio.
-- Se for idiota e ousar me atacar
novamente, espanco você e depois mato a major e te faço comer os pedaços dela cru.
A neta de Ricardo não conseguiu
controlar o pranto. Encarou-o.
--
Não a machuque mais... – Pediu. – Eu imploro... Vai acabar matando-a...
Crocodilo exibiu um sorriso.
-- Eu não o farei, você o fará! –
Apontou-lhe o dedo em riste. -- E se não o fizer, enfiarei um monte de balas
naquela cabecinha bonita até meu sapato tocar os miolos dela...
A Villa Real soluçou, enquanto levava a
mão a boca para tentar conter o desespero. Como conseguiria continuar com
aquilo?
Não tinha mais forças para seguir em
frente.
Sua cabeça doı́a, seu coração
acelerava, temendo que a qualquer momento o pior acontecesse.
-- Diga de uma vez se fará ou eu terei
que cumprir a minha ameaça? – Indagou impaciente.
Aimê meneou a cabeça afirmativamente.
-- Sim... Sim... eu farei o que
pedir...—Falou rapidamente.
-- Ótimo! – Estendeu a mão. – Venha
comigo... Tenho planos maravilhosos para hoje.
A jovem seguiu ao lado do Crocodilo,
caminharam pelo acampamento até chegarem ao cı́rculo que fora montado. Sentiu
o coração entristecer ao ver Diana presa naquele tronco.
Viu a face ferida, os lábios
ressecados...
Fitou os olhos negros e seu coração
gritou em silêncio.
Ela ainda usava as botas, a calça estava
suja e a camiseta fora colocada novamente em seu corpo. Tentou não chorar.
Viu o guarda-costas loiro exibir um
sorriso cheio de ironia. Desejou fazê-lo sofrer até o último segundo de
vida.
Desejou que a justiça divina pudesse ser
feita e que todos pagassem caro por tudo o que estavam fazendo.
Fitou o céu claro...
Se havia um Deus misericordioso em algum
lugar, com certeza deveria estar a olhar pela major que já sofrera tanto
naquela vida.
Ouviu os gritos de chacotas.
Havia
vários homens ao redor, pareciam se divertir com a situação da Calligari.
Horrorizou-se ao ver a fogueira acesa e um ferro sendo esquentado.
Pararam diante da morena.
-- E como passou a noite? As
acomodações são do seu gosto? – Debochou Crocodilo.
-- Já estive em melhores... mas... –
Passeou o olhar pelo corpo da esposa de forma desavergonhada.
A Villa Real estava sendo bem tratada em
alguns sentidos. Tinha roupas limpas, água para tomar banho e alimentos para
que sua aparência agradasse os compradores.
Aimê sentia aquele poderoso olhar a
fita-la daquele jeito tão aterrador, tão perigosamente ousado. Não cansava
de se perguntar como ela conseguia ser forte e ousada daquele jeito.
Petulante, arrogante e deliciosamente
linda...
A voz de Crocodilo lhe tirou dos seus
pensamentos.
-- Você não se dobra mesmo, não é? –
O homem questionou. – Você é uma ı́ndia, Diana?
A morena levantou a cabeça em desafio.
-- Sou metade ı́ndia e tenho muito
orgulho disso!
Crocodilo segurou o queixo da morena,
obrigando-a a fita-lo, e a Villa Real não conseguiu esconder o olhar furioso
diante do ato.
-- Otávio tinha um sonho quando era
vivo... Você fugiu antes de ele conseguir... Mas a filha dele irá fazer essa
homenagem ao amado e herói papai... – Fitou a jovem. – Não é isso, Aimê?
A garota sabia que por trás daquela
expressão tranquila havia uma ameaça e mesmo que não desejasse, precisava
fazer aquele jogo.
A neta de Ricardo fez um gesto de
assentimento com a cabeça.
-- Sim!
Crocodilo sorriu, enquanto mirava a
ı́ndia.
-- Fico feliz por isso... Seu pai no
céu onde deve se encontrar, vai regozijar ... – Fez sinal para que os homens
trouxessem o ferro. – Sabe, o coronel costumava dizer que nos livros de
história que lia, os ı́ndios eram marcados a ferro quente e levavam ali a
marca dos conquistadores...
Diana relanceou os olhos em provocação.
-- Realmente você não tem uma ideia
original, por isso vivia a sombra do Otávio... Honestamente, quando vim ao seu
encontro, imaginei que tinha pensando em coisas mais surpreendentes.
O traficante levou a mão até a pistola
em um gesto de ameaça.
-- Segurem-na! – Ordenou aos homens. –
Quero que a marca seja feita no abdome sarado... As costas ficarão para as
chicotadas.
A Villa Real ficou horrorizada diante do
que estava para acontecer.
Não... Não... Não poderia... Não
poderia...
Olhou para o bandido em apelo mudo, mas
foi ignorada. Observava tudo ao redor... Parecia paralisada.
Os bandidos fizeram o que foi dito,
enquanto o outro levantava a blusa, o loiro entregava o ferro para Aimê.
Os olhos azuis estavam arregalados em
puro pavor.
Meneou a cabeça negativamente,
implorando ao chefe que aquilo não fosse feito.
Ela viu quando sob o olhar do Crocodilo,
uma arma foi engatilhada na nuca da amada. Um dos capangas ria, enquanto seus
dentes podres apareciam.
Mirou o ferro quente, ele tinha o
formato da letra V... estava vermelho do fogo... Brilhava em brasas... Encarou
a esposa e viu a força que não a abandonava... Como podia ser tão destemida?
Exibia total frieza diante do que estava
prestes a acontecer.
Fitou os lábios entreabertos, desejou
se jogar em seus braços e poder acordar daquele pesadelo.
A filha de Alexander sabia o que a
esposa estava passando. Via o pânico expresso em seu olhar... Mas apenas o
amor que conseguia vislumbrar nos olhos azuis deram paz para seu espı́rito.
Meneou a cabeça imperceptivelmente,
mostrando para a jovem que ela deveria fazer o que estava sendo pedido.
A bela florista respirou fundo.
Todos observavam ansiosos pela
concretização do ato. Não demorou para gritos de incentivos serem ditos, o
tom ameaçador usado, deixava claro como desejavam a morte da pintora.
Estendeu a mão, pegando o objeto que
lhe era ofertado como uma espada ao grande guerreiro do novo mundo.
Não era pesado e havia como pegar sem
se queimar. O v brilhava em uma mistura de laranja avermelhado.
Fitou o abdome liso... O lugar onde
beijara tantas vezes... Mirou o cós da calça surrada e suja... A camiseta que
tinha sido levantada.
Crocodilo se aproximou.
-- Aimê, deve colar e apertar... Assim
a marca vai ficar perfeita... Cuidado para não ficar torta... Afinal, a dama
em questão é uma pintora famosa, ela não vai gostar de imperfeição no seu corpo...
A Villa Real tremia... Voltou a encarar
a amada.
Ouvia sua respiração acelerada... Ouvia
o próprio coração...
A Calligari mirou seus lábios... Depois
mordicou o próprio lábio inferior.
-- Faça, filha de Otávio, faça de uma
vez! – O traficante ordenou.
Alanna estava no cı́rculo e via como a
jovem bela que era mantida em cárcere hesitava... Rezou para que ela fizesse,
pois se não concretizasse aquilo, seria o fim da bela ı́ndia.
Aimê apertou forte o objeto, sentindo
os dedos ficarem dormentes, enquanto suava... direcionou ao local... Hesitou,
mas ao ver a arma apontada para a cabeça da amada, fez o que fora ordenado.
Teve a impressão que ouviu o chiar ao
encontro da carne... O cheiro de pele sendo queimada...
Os olhos azuis verteram lágrimas, fitando a
amada...
Diana cerrou os dentes, rugindo com um
leão ferido... Os olhos negros permaneceram abertos... Perdidos...
A Villa Real largou o objeto de tortura
no chão, ficando horrorizada ao ver a marca que deixara na pele da artista.
Descontrolada, saiu correndo do local, seguindo em direção à barraca.
Crocodilo fez sinal para que Alanna a
seguisse. Depois ficou a se deliciar com a expressão de dor que a major
demonstrava.
Observou a carne em sangue... Sorriu.
-- Essa é apenas a introdução do que
farei a ti... Na verdade, não eu, mas a sua amada Aimê, essa sim vai ser a
responsável por sua morte... – Encarou os bandidos. – Joguem água com
bastante sal na marca da ı́ndia... Ah, deem algo de comer para ela... Isso
está ficando muito interessante e divertido, então quero que ela continue
viva por mais uns dias...
A Calligari viu o homem se afastar em
direção a barraca onde Aimê estava e se sentiu impotente por não poder fazer
nada.
Sua dor era tão grande que pensou se
desmaiaria naquele momento. Não sentia as pernas, apenas deixando-se se manter
de pé pelos pulsos amarrados.
Olhou para o céu, enquanto lutava para
conter as lágrimas. Mordeu o lábio inferior.
Viu quando alguns capangas se
aproximaram sorridente. Traziam um balde cheio de água com sal.
O loiro se aproximou.
-- Joguem devagar, quero que ela sinta
cada gota lentamente... – Sorriu de forma cruel.
Diana apenas o fitava, enquanto seu corpo era
sacudido por espasmos de dor.
No seu cérebro, naquele momento só
passava o desejo de vingança, a ânsia de proporcionar àqueles desgraçados a
mesma agonia que estava a sentir.
Não, as coisas não terminariam naquele
lugar, disso tinha certeza.
O pajé encontrou Sirena no lado de fora
da oca, a bela ı́ndia demonstrava estar bastante nervosa.
-- O que houve? – O homem indagou.
-- Tupã está pronto para partir,
deixou claro que não moverá um dedo para ajudar a Diana... – dizia aflita –
se ele continuar a se negar, temo que a princesa não sobreviva dessa vez.
O pajé fitou na direção onde sabia que
o lı́der estava.
Uma vez por culpa da sua neutralidade,
uma inocente morrera, mas daquela vez não permitiria, mesmo que tivesse que
enfrentar a todos sozinho.
Sabia que deveria ir até ele e apelar
mais uma vez para que fizesse algo, mas não acreditava que conseguiria. Mirou
a jovem, tomando-lhe as mãos nas suas.
-- Eu não posso convencer o grande
Tupã, mas Sirena pode, Sirena pode fazer com que guerreiro arrogante vá ao
resgate da princesa... Sirena tem dentro de si algo tão poderoso quanto todo o
exército do mundo...
A mulher meneou a cabeça negativamente.
-- Não, ficará ainda mais furioso...
Sabe que ele tem verdadeiro ódio por eu ter tido uma relação com a major
quando era adolescente... – Parecia constrangida. – Isso é o que faz não ir
ao resgate da princesa... Sinto-me tão culpada por isso...
O chefe a olhou intensamente. Tocou-lhe
os cabelos negros e lisos...
-- Diana e Tupã são irmãos...
A ı́ndia arregalou os olhos em espanto
diante daquela revelação.
Desde que conhecera a história da
Calligari, sabia que eram primos, e que a bela morena nunca tivera a
oportunidade de conhecer a mãe, pois quando fora para a tribo, ela tinha sido
julgada e morta.
-- Como?
-- Uracan usou o poder que tinha para
tomar o filho da princesa do Sol, fez isso cruelmente e quando a irmã se
envolveu com Alexander e Diana foi concebida, ele usou todo o ódio para
colocar o primogênito contra a mãe e a irmã.
-- Mas...
-- Sirena, fale com o Tupã, mostre a
ele que você o ama e que o escolhera não por que a Calligari não te
assumiria, mas pelo fato de você sentir seu espı́rito desejoso de se unir
apenas a ele... Ele te ama... Veja, nem mesmo aceitou ter outras esposas, isso
demonstra a adoração que tem... Peça a ele... Precisamos dele nesse momento...
A ı́ndia pareceu ponderar, receosa da
reação do homem que vivia ao seu lado...
O ı́ndio era um chefe e companheiro
maravilhoso, mesmo que exibisse aquela arrogância e insensibilidade, era
diferente quando estavam sós... Era carinhoso, atencioso, coisa que poucos por
ali eram, porém quando si tratava da pintora, ele se transformava totalmente.
Respirou fundo!
Decidida, caminhou na direção que o
marido tinha seguido.
Aimê estava dentro da barraca, fora
proibida de deixar o espaço. Havia dois homens vigiando a entrada. A filha de
Otávio chutou a cadeira, enquanto buscava controlar o desespero que tomava
conta de si.
Jogou contra o chão batido os pratos
que fora servido o almoço, derrubando tudo o que tinha ao redor. Desejava ver a
mulher que amava, desejava saber como ela estava depois de tudo o que se
passara.
Andava de um lado para o outro no
pequeno espaço, pensando o que poderia fazer, a quem poderia pedir ajuda...
Sua raiva crescia por todos... Pelos
avós que permitiram que a morena fosse até eles, pelo pajé e por Piatã que
não prenderam a ı́ndia na tribo.
Teve vontade de gritar alto, de rugir
como um leão em cárcere...
Se pudesse mataria a todos... sua
vontade era de fazê-los sentir o mesmo que a Diana estava sendo submetida.
Parou, enquanto cobria o rosto com as mãos.
O que deveria fazer?
O que poderia fazer para salvá-la?
Como enfrentaria aquelas pessoas todas?
Ouviu passos e não demorou para o
odioso bandido aparecer.
Se tivesse uma arma, descarregaria todas
as balas nele, ainda mais diante daquele sorriso debochado.
-- O que achou? – Crocodilo seguiu até
a cadeira, observava a bagunça, ajeitando tudo em seu lugar, depois sentou. –
Agora a obra do seu pai está completa. – Cruzou as pernas. – Ele morria de
vontade de marcar a pele bronzeada com o V, assim todos saberiam que a selvagem
pertencia a ele.
Os olhos azuis encararam o homem. Estavam
escuros, cheio de fú rias.
-- Vai dizer que não gostou? –
Provocou-a. – Lembre-se de que a Calligari enlouqueceu seu paizinho e que se
não fosse por ela... Eu não o teria matado...
-- Você o matou? Foi você?
Mais uma vez a Villa Real foi contra ele
aos gritos, mas fora contida por dois homens que entraram, segurando-a. O
traficante não pareceu se importar com a explosão.
-- Sim, ele tinha se tornado
inconveniente, enlouquecido... Essa ı́ndia é feiticeira... O coronel ficou
totalmente obcecado e isso resultaria em algo péssimo para os negócios.
Aimê cerrou os dentes.
Mirava aquele monstro diante de si e se
assustava com o que ele ainda poderia fazer para infligir dor à pintora.
Umedeceu os lábios.
Tentou se livrar dos braços que a
prendia.
--
Soltem-me, seus desgraçados! – Esbravejava, tentando se desvencilhar. Crocodilo
fez um gesto para que os homens se afastassem.
A neta de Ricardo passou a mão pelos
cabelos.
-- Coloque-me no lugar da Diana... Use o
chicote e dilacere a minha carne... Marque-me a ferro... Mas a deixe em paz,
deixe que ela vá embora...
O bandido esboçou um sorriso.
-- Sabe, Aimê, você me surpreende, eu
sempre achei que você fosse uma covarde, uma medrosa que não teria coragem
para nada... Mas... Mas você está enfeitiçada igual o seu pai... – Meneou a
cabeça. – Essa ı́ndia selvagem tem que morrer... Pratica magia...
-- Não! – A Villa Real falou mais alto.
– Eu não estou enfeitiçada... Estou apaixonada... – Bateu no peito. – A
Calligari está aqui dentro... Sou capaz de dar a minha vida por ela...
-- Não seja burra! – Levantou-se. – A
Diana vai te trocar logo, ela não é uma mulher fiel... Quando estava noiva
tinha casos com outra, se relacionava com várias e não respeita nenhuma...
-- Mesmo assim, eu a amo e se não puder
ficar ao lado dela, desejarei com todo o meu coração que ela possa ser feliz...
-- Idiota igual ao seu pai... –
Tomou-lhe o braço bruscamente. – Você vai continuar fazendo que eu ordenar, se
não quiser que arranque os membros da sua amadinha... – Empurrou-a,
afastando-se.
A neta do general viu-o se afastar e se
não fosse o fato de Alanna ter aparecido, detendo-a pelo braço, a jovem teria
se arriscado a desafiar ainda mais o bandido.
-- Fique quieta ou vai piorar ainda mais
a situação da morena. Os olhos azuis se estreitaram em fú ria, respirou
fundo.
-- Tem como piorar? – Indagou com
sarcasmo. – Você viu o que eu fiz? – Desvencilhou-se do toque. – Eu a marquei
a ferro quente... – Passou a mão pelos cabelos. – Realmente sou pior do que o
meu pai, sou pior do que todos esses... – Limpou os olhos chorosos. – Sou uma
inútil que não consegue nem mesmo salvar a mulher que se arriscou para fazer
isso por mim!
A loira a fitava com atenção.
Viu toda a cena e sabia como fora
difı́cil para a bela garota desempenhar aquele papel, sabia como ela tivera que
lutar para levar a frente um plano tão cruel.
-- Aimê, você está fazendo além do
seu próprio limite... Não acredito que outra em seu lugar teria toda essa
coragem... – Estendeu o braço, tocando-lhe a lágrima com o polegar. – A major
sabe do seu sacrifı́cio, ela sabe como isso está sendo difı́cil...
A Villa Real meneou a cabeça em
protesto.
-- Não... eu a estou machucando, estou
ferindo-a cruelmente do mesmo jeito que o meu pai fez, então... – Soluçou. –
Eu sou um monstro igual a ele ou pior... Como pude fazer aquilo... A minha
famı́lia é uma maldição na vida da Diana... Nascemos para fazer mal a ela...
A mulher lhe tomou o rosto nas mãos.
-- Você está tentando salvá-la...
Está tentando não permitir que a matem... Então pare de se martirizar...
Aimê mirou os olhos claros.
-- Eu preciso ir até ela... Eu preciso
saber se ela está bem... Preciso que ela me perdoe... Preciso abraçá-la,
senti-la em meus braços... Oh, Deus, eu preciso ficar ao lado dela...
Alanna condoeu-se da jovem, tomando-a em
seu abraço, sentindo as lágrimas e os espasmos lhe sacudir o corpo em total
desespero. Acariciava os cabelos, consolando-a como se faz com uma criança,
porém o pranto parecia cada vez maior.
O sol estava alto naquele momento.
Os bandidos se divertiam atirando nos
animais, assustando-os, enquanto outros tinham saı́do em busca de madeiras.
Crocodilo observava tudo com atenção.
Dentro de dois dias deixaria aquela
selva de uma vez por todas.
Logo entregaria a valiosa Aimê ao seu
destino e ainda receberia um bônus a mais por isso. Iria para bem longe e trocaria
de nome, de vida...
Fitou a Calligari.
Não demoraria para dar fim a desgraçada
arrogante. Apenas esperaria mais um pouco para descarregar uma pistola em sua
bela cabeça.
Sorriu!
Seu plano fora genial, afinal, haveria
martı́rio maior do que ser torturada pela pessoa que se amava?
Olhou para o céu ao ouvir o som de um
pássaro que voava ao redor do acampamento. Tirou o revólver da cintura,
mirando a ave, mas logo ela se afastou.
Aproximou-se da filha de Alexander e viu
os olhos negros se voltarem para si.
-- Você é muito forte, major, outro no
seu lugar já teria desmaiado. – Levantando-lhe a blusas e tocando a marca. – Vai
ficar lindo quando secar...
A morena cerrou os dentes quando o
sentiu pressionar forte, temeu perder a consciência.
-- Otávio ficaria feliz com o trabalho
que a filha dele fez... – Retirou a mão, encarando-a novamente. – V de Villa
Real ou de uma ı́ndia vadia que faz pose de dama da alta sociedade. – Sentou-se
em uma pedra. – Engraçado como o mundo é irônico... – Tirou a arma do coldre,
enquanto começava a limpá-la. – Esse lugar lindo é o seu berço e a sua
sepultura... vai morrer sendo vista como traidora... – Sorriu em desdém. – Nem
os ı́ndios nem os brancos honrarão sua
memória...
A filha de Alexander encarava o homem.
Sentia-se cansada, desejosa de que apenas
aquilo chegasse ao fim, mas dentro de si havia uma raiva que lhe dava forças
para continuar seguindo em frente.
-- Há... – Suspirou sentindo a lı́ngua
presa. – Eu não preciso do reconhecimento de ninguém... – As palavras soavam
baixa, mas firme. – Sei quem eu sou... Sei de onde vim... Coisa que você não
sabe...
Crocodilo mirou a roupa encardida, as
botas enlameadas.
-- Ainda levanta esse nariz em pura
arrogância... Eu acho que já é hora de implorar por clemência... Implore...
E eu te mato de uma vez...
Diana exibiu um sorriso que era uma
mistura de dor com deboche.
-- Nunca me curvaria a você... não tem
dignidade para isso!
O
bandido se levantou irritado.
-- Então as torturam continuarão...
Farei sua amada Aimê arrancar seus olhos... Cada um dos seus dentes...
A Calligari sorriu novamente e teve um
acesso de tosse.
-- Precisará arrancar todos os meus
membros... porque se ainda restar um sopro de vida dentro de mim... – exibiu os
dentes alvos. – Te matarei...
Os olhos do Crocodilo ficaram vermelhos
de raiva.
-- Você já está morta, Diana...
Mandarei que os homens cavem uma cova rasa e te e te enterrem, assim servirá
de comida para os urubus...
A major o viu se afastar e não deixou
de rir, mesmo que aquilo a fizesse sentir mais dor.
O rio em meio às árvores era bastante
usado para o banho e para fornecer água para os povos que moravam naquela
região.
Sirena se aproximava do local de
isolamento onde o marido costumava se lavar.
Viu-o permanecer quieto e esperou
pacientemente que ele notasse sua presença na margem. Só agora tivera a
oportunidade e a coragem de falar com ele.
Não demorou para o guerreiro forte
fitar a bela ı́ndia. Nu, deixou seu lugar, seguindo até a amada.
Os mú sculos fortes, a pele bronzeada e
o olhar arrogante lembravam outro.
-- O que deseja, mulher? – Parou bem
próximo a ela. – Junte-se a mim em meu banho...
Os lábios foram ao encontro da amada
que desviou a boca.
Ele demonstrou irritação com a
rejeição. Sirena tocou-lhe o ombro, depois o encarou.
-- Sabe qual é o meu desejo nesse momento...
Naquela tribo era comum a prática da
poligamia, mas Tupã não aderiu, pois amava de mais a esposa para sentir
desejo por outras.
-- Não irei salvar a Diana... E não
acredito que esteja a me pedir isso! – Afastou-se aborrecido. – Foram amantes,
deitou-se com ela, enquanto eu já era louco por ti... Era minha prometida e se
encantou por ela...
-- O que queria? Que te visse se deitar
com todas as mulheres das tribos e ficasse esperando que viesse a mim? – Questionou
em fúria. – Eu te queria e você agia como se nossa união te desagradasse,
agia como se eu fosse apenas um prêmio como outro qualquer...
O chefe permaneceu de costas... Mas logo
a fitou.
-- Não podia demonstrar o que sentia,
era fraqueza... Uracan...
-- Uracan era um miserável! –
Interrompeu-o. – Ele fez de tudo para te transformar no monstro que era, agiu
como queria, matando e destruindo tudo para ferir Diana... Ele a jogara na
floresta para ser morta... Ele matou meus pais... – Dizia em lágrimas. –
Realmente é esse monstro que você deseja seguir? – Indagou furiosa.
Permaneceram em silêncio por longos
segundos, apenas se fitando, medindo-se.
– Teremos um filho... – A ı́ndia falou
baixinho. -- Depois de tanto tempo consegui o que tanto você queria...
Os olhos do ı́ndio brilharam em
contentamento.
Há tempos sonhava com esse momento e
sofreram bastante ao imaginar que jamais teriam um filho legı́timo, já que o
marido tinha alguns de relações anteriores.
Ele se aproximou dela, abraçando-a, mas
foi repelido.
-- Não quero que meu filho cresça
sabendo que o pai dele é um ser cruel... Não quero que meu filho cresça e
fique sabendo que a tia morreu porque o grande guerreiro a odiava... Eu não
quero estar ao lado de um homem que me lembra o impiedoso Uracan... Então
pense como realmente vai querer que isso entre nós funcione...
Antes que Tupã pudesse falar alguma
coisa, Sirena deixou o local.
O pajé ouvia tudo e ao ver o ı́ndio
sozinho, aproximou-se.
Tupã lhe dirigiu um olhar furioso.
-- Não fale nada... – O homem jovem
levantou a mão. – Formarei uma comitiva com os melhores guerreiros e irei ao
resgate da sua princesa... – Apontou-lhe o dedo em riste. – Haverá apenas uma
condição que exigirei.
-- O que quiser...
-- Não quero que a Diana saiba da nossa
ligação... Não quero que saiba que somos irmãos...
O pajé assentiu, enquanto agradecia aos
deuses por aquele milagre.
Só mais um rsrs
ResponderExcluir