A dama selvagem - Capítulo 31


Piatã deixou a pequena choupana ao ouvir um som conhecido.

Apoiando-se em um pedaço de pau, caminhou lentamente, enquanto via as pessoas se aglomerarem em meio as portas de suas pequenas casas e no grande pátio.

As crianças ficavam afoitas, os idosos sempre se assustavam, os jovens demonstravam fascı́nio, como se desejassem voar também como as aves.

Viu o pequeno pássaro de aço pousar.

Esperou ansioso durante longos minutos e quando a portinhola abriu, viu a ı́ndia selvagem.

O vento avoaçava os cabelos negros. A expressão dela era séria. Não deixava de exibir aquela postura de superioridade, porém havia algo diferente da última vez que esteve ali, apenas ainda não conseguia entender o quê.

Não conteve um sorriso ao vê-la.

Pensara se antes de morrer, ainda veria sua garota de olhar arrogante e orgulhoso. Diana respirou fundo ao ver os olhares que a fitavam.

Não fazia muito tempo que estivera ali, não fazia tempo que o ódio a movia, deixando-a totalmente cega, mas agora era diferente.

Parou no primeiro degrau, enquanto colocava os óculos pretos em estilo aviador.

Suspirou!

Mirou a os rostos conhecidos...

Viu os infantes se aglomerando ao redor do avião. Cerrou os dentes...

Por alguns segundos fechou os olhos e se recordou de caminhar ao lado da esposa e subir naquele mesmo avião.

Umedeceu os lábios.

Pegou a mochila que trouxera.

 Aimê...

Precisava  usar  toda  a  inteligência  para  salvá-la.  Agora  era  movida  por  dois  poderosos  combustíveis:  O  ódio  e o amor...

Tirou a jaqueta de couro.

Estava quente...

Agora ficaria apenas de calça jeans surrada, camiseta e botas de cano longo. Desceu os degraus lentamente.

Viu um rosto conhecido a lhe observar e continuou até chegar ao bom homem. Recebeu o afetuoso abraço que lhe fora oferecido.

-- Desculpe por não ter avisado que viria! – Disse em seu ouvido. – Mas obrigada pela recepção.

O velho ı́ndio a encarou.

-- O que a traz de volta, princesa?

A major o mirou, enquanto jogava a cabeça para trás.

-- O Crocodilo trouxe Aimê para floresta de novo e preciso salvá-la...

A expressão enrugada do homem demonstrou maior preocupação.

A filha de Otávio ter sido pega novamente pelo perigoso bandido era algo terrível.

-- Como isso aconteceu? – Questionou preocupado. – Esse demônio não fora preso depois do que fez ainda? O que acontece com as leis dos brancos? – Indagou aborrecido.

A morena colocou a mochila no chão, depois voltou a fita-lo.

 

-- Eu fui burra o suficiente para baixar a aguarda... – Suspirou. – Mas não tenho tempo para conversas, apenas passei para falar contigo, agora mesmo seguirei pela mata, preciso ir ao encontro deles.

Piatã observava como a major demonstrava agitação e ao ouvir ela dizer que iria ao encontro desses homens sozinha, temeu por sua vida.

-- Você sabe que não tem permissão para isso! – Avisou. – Tupã deixou claro que se aparecesse novamente aqui seria castigada. – Deu-lhe as costas. – Vá para casa e espere que outros salvem a garota.

A major levou as mãos aos quadris, enquanto olhava as pessoas ao redor, depois fitou o céu claro.

-- Não me importo com o que ele diz! – disse por entre os dentes. – Atravessarei essa floresta e irei até a Villa Real e se ele tentar me deter, terei que ir contra ele... Vamos ter uma guerra, então!

Piatã parou, permanecendo de costas para ela, mas logo a mirou.

-- Você é teimosa de mais, princesa, nunca escuta ninguém, sempre age por impulso. – Repreendeu-a.

-- Vai me ajudar ou também terei que ir contra você?

 O velho suspirou.

Olhava a mulher para a sua frente e em alguns detalhes não a reconhecia, ainda mais quando se tratava dos motivos para se arriscar tanto. Não havia dúvidas de que aquela empreitada seria muito arriscada, mas Diana agora era movida pelo amor.

Lembrou-se do pai dela.

Alexander agira daquele jeito quando fora até a aldeia ao saber que a mulher que amava estava grávida. O bravo general enfrentou a todos para levar consigo a mãe da sua única filha.

-- Irei contigo! – O homem disse por fim. – Precisará que a acompanhe, pelo menos para que possamos chegar à tribo. – Seguia em passos lentos. – Venha comigo, precisamos de algumas coisas, não teremos ajudantes dessa vez. – Comentou aborrecido.

Diana assentiu, enquanto colocava a mochila nas costas.

Observou como as pessoas continuavam a observá-la, era sempre assim, depois de todos aqueles anos, ainda era vista com ressalva por aqueles habitantes.

Levantou a cabeça, enquanto caminhava seus pensamentos pareciam perdidos em lembranças... Ao entrar na pequena choupana recordou da última noite que passara ali.

Um sorriso brincou nos seus lábios.

Fitou a mesa rú stica, sentando-se no banco.

Voltou a cabeça para o canto onde a esteira estreita estava recolhida.

 

-- Eu só quero dormir... – Sussurrou em seu ouvido. – Pare de se debater ou vai acordar o Piatã.

 

-- Recordo-me muito bem que não era comigo que deveria dormir e sim na rede. – Retrucou baixo, enquanto lutava para se livrar dos braços que a prendia pela cintura.

-- Mas eu quero dormir contigo... Então fique quieta! – Falou firme.

 

Por alguns segundos a Villa Real fez o que ela tinha dito, permanecendo quieta, ponderava que se não era melhor se manter estática e fingir que aquela mulher não estava ali, porém a presença dela ultrapassava o físico, era como se usurpasse sua própria alma.

Por que Diana Calligari a afetava tanto?

Ainda estava triste com as palavras que ouvira, ainda se sentia ferida, mas mesmo assim algo maior parecia empurrá-la direto em direção a ela... Tinha a impressão que estava à beira de um precipício.

-- Eu gosto do seu cheiro...

A voz rouca e baixa a tirou de suas divagações, porém nada respondeu.

-- Tira a roupa... Está frio, quero me aquecer em ti...

Aimê sentiu as mãos seguindo por baixo de sua camiseta e as deteve.

-- Chega, Diana!

A Calligari mordiscou o lábio inferior, enquanto a puxava mais para si.

-- Eu fico excitada quando me chama... – Mordiscou a pontinha da orelha dela. – Como sabia que eu estava olhando para os seus seios na mesa? Eles se excitaram... O que imaginou, melhor, recordou de quando os toquei com a minha boca?

 

Aimê sempre a desafiara e a enfrentara, mesmo quando contava com uma deficiência. Não havia dúvida ser uma jovem admirável em todos os sentidos...

Engoliu em seco ao recordar de como fora má com ela... Como fora grosseira em toda aquela empreitada.

A voz do ı́ndio a tirou dos seus pensamentos.

-- Não acho que seja uma boa ideia ir sozinha e enfrentar esses homens. – Piatã dizia, enquanto recolhia algumas coisas que necessitariam. – Deveria ter pedido ajuda aos homens brancos, eles têm leis e são treinados para isso.

A Calligaria passou as mãos pelo rosto.

-- Antes que eles chegassem perto, a filha de Otávio seria morta...

O ı́ndio encheu duas canecas com água do pote de barro, ofertando uma a major e bebendo a outra.

-- Então você morrerá? É isso que veio fazer? Sacrificará sua vida para que Aimê viva? Por que fará isso?

 Diana bebeu lentamente o lı́quido, parecia degustar com calma...

Ao terminar, fitou o velho amigo.

Aquele homem sempre estivera consigo, mesmo diante da contrariedade de todos.

-- Eu a amo... – Disse baixinho. – Amo-a tanto que meu peito chega a doer... Não me importo de fazer qualquer sacrifı́cio por ela.

Piatã sorriu, enquanto estendia a mão enrugada e cobria a dela.

-- Eu sabia que seria questão de tempo para que admitisse esse sentimento... Mesmo quando esbravejava contra a Villa Real, todos sabı́amos o que já sentia... – Apertou-lhe os dedos. – Mas eu tenho certeza de que a menina Aimê não deseja que se machuque ou aconteça algo pior...

A pintora nada disse, voltando a beber sua água.

O  ı́ndio  sabia  que  seria  uma  tarefa quase impossível  tentar  convencer  a  princesa  do  contrário,  então  só  lhe  restaria pedir proteção aos bons espı́ritos.

 

 

 

 

 

Aimê foi levada para a tenda que fora armada no acamamento. Pouco conseguira ver do lugar.

Estava escuro, mas notou a fogueira acesa, ouviu a voz de mulheres e recordou dos momentos que vivera quando tivera que ficar naquele lugar.

Sabia que daquela vez seria diferente, sabia que daquela vez o risco era maior. Tentou se livrar das cordas, mas não conseguiu.

Apenas uma pequena luminária de bateria clareava o pequeno espaço. Sabia que estava no mesmo lugar de antes.

Recordava-se de quando Diana chegara ali para salvá-la, lembrou-se da voz forte e ameaçadora... Tentou mais uma vez se livrar das amarras, mas as tentativas eram inú teis.

Tinham-na colocado sentada em uma cadeira, enquanto prenderam-na, evitando assim uma tentativa de fuga, coisa que seria quase impossível, levando em conta o número de bandidos que estavam ali.

A tenda estava cercada, pareciam temerosos que a morena selvagem invadisse novamente e levasse a filha de Otávio.

Ouviu passos e o segurança loiro apareceu.

O olhar dele continuava ser desrespeitoso e atrevido.

Não acreditava que passou despercebido de conversar com a Diana sobre ele, talvez se assim o fosse, poderiam ter evitado ser ludibriada daquele jeito e sob o teto seguro da major.

Se não estivesse sido consumida por ciúmes...

Viu-o se aproximar com uma caneca em mãos, colocando em seus lábios. Encarava os olhos verdes, enquanto sentia o lı́quido molhar sua garganta.

O rapaz já se afastava quando o som da voz baixa o deteve.

-- Por que traiu a pessoa que te deu trabalho? O que te levou a se associar a um bandido como o Crocodilo, se sabe que cedo ou tarde será preso ou morto?

O jovem não respondeu de imediato, parecendo pronto para sair por aquela porta improvisada, mas acabou se voltando para ela.

Aproximou-se.

Sob a luz parda, ele tinha uma aparência terrível.

-- Diana Calligari matou meu pai, então rezo há anos para que a oportunidade de vingança ocorra e agora está muito perto.

Os olhos azuis pareciam espantados. Como a major matara...

-- De que falas?

O segurança traidor exibiu um sorriso.

-- Meu pai servia ao exército... Lutara ao lado do seu pai e tivera que se submeter a filha do general Alexander... Acha que um homem pode se submeter a uma mimada arrogante quando tem dignidade?

Aimê ficou calada, enquanto esperava ouvir mais.

-- Meu pai ajudou o seu pai, então você deveria ser mais grata e mais amigável a minha causa... – Aproximou-se, enquanto estendia o braço para tocar a face da filha de Otávio. – Eu quero você pra mim, mas antes matarei a Calligari... – Exibiu um sorriso cruel. Quero o sangue dela nas minhas mãos...

A Villa Real tentou controlar o pavor que aquelas palavras causaram.

-- Por que o prefeito aceitou entrar nesse plano? O Alex é meu noivo... O sorriso agora virou uma gargalhada assombrosa.

-- Noivo? Ah, sim, no dia do noivado você até comemorou nos braços da ı́ndia selvagem... – Passou a lı́ngua pelo lábio superior. – Eu gozei muitas vezes vendo as cenas, mas seu sogro e noivinho não acharam o mesmo...

O rosto da Villa Real empalideceu.

-- O que está querendo dizer?

-- Instalei uma câmera no seu quarto... Acredite, a tal da Diana sabe fazer as coisas... – Voltou a acariciar a face da garota. – Não há dúvidas que nas veia dela corre sangue desses selvagens que vivem por aqui.

Aimê teve ânsia de vômito ao imaginar que a sua intimidade fora invadida daquele jeito. Vozes foram ouvidas lá fora.

-- Depois conversamos mais, princesa... Não se preocupe, andei vendo o vı́deo inú meras vezes e sei como você gosta de ser tocada...

A garota sentiu-se aliviada ao ver o rapaz se afastar.

Precisava fazer algo para impedir que a major chegasse até ali, sabia que seria o fim da morena... Porém não tinha ideia de como evitar algo assim...

Mesmo diante do ciúmes que sentia, ficaria muito feliz se ela ficasse com a ruiva e não se preocupasse consigo... Deus!

Diana não titubearia, ela iria até eles, agiria impulsivamente e arriscaria a vida de forma irresponsável. Fechou os olhos, buscando não entrar em pânico, buscando uma saı́da...

Um som conhecido chegou aos seus ouvidos... Seria a ave do pajé?

 

 

 

 

A canoa seguia rio abaixo.

O dia estava bonito e claro.

Os animais podiam ser vistos à margem da fonte, enquanto bebiam água. Seus olhares eram sempre atentos, pois sabiam que não era difı́cil serem atacados por predadores.

Uma pequena capivara olhava os visitantes, parecendo tão interessada que por pouco não fora comida por um jacaré.

Pássaros voavam em bandos no céu azul.

O grasnar das araras seguiam mata a dentro.

Era possível ver os macacos a se balançar nos galhos, seu guinchar era um som  que parecia afetar os outro bichos. O rio não estava cheio, as chuvas torrenciais não tinham inundado ainda.

Piatã observava a major remar rápido, não demonstrando cansaço, apenas determinação. Não trocaram palavras durante o percurso, Diana parecia concentrada e pensativa.

-- O pajé vai tentar te dissuadir dessa ideia... – O velho disse depois de um tempo. – Sabe disso...

A Calligari limpou o suor da face, mas rapidamente voltou a tarefa árdua.

O sol estava quente.

Os braços da morena se moviam em harmonia.

-- Ele gastará as palavras e a sabedoria dele em vão.

O ı́ndio remava com menos vigor, parecia cansado para sua idade.

Observava a mulher de cabelos negros e se recordava de como sempre agira segundo a própria vontade, recordava de como precisara muitas vezes omitir alguns fatos para que a filha de Alexander não fosse castigada, mesmo assim, a princesa da tribo sofrera bastante.

-- Então a menina Aimê se rendeu ao seu charme... Mas não acredito que se tornou uma esposa submissa e obediente. – Provocou-a. – Tenho a impressão de que quem manda nessa relação não é a poderosa Diana.

A pintora não respondeu de imediato, apenas desviou o olhar, parecendo perdida em lembranças.

-- Ela voltou a enxergar... Aquele mar azul pode se ver e também me ver... – Esboçou um sorriso de canto. – Sim, você está certo quando diz que ela não se submete, ela luta, me enfrenta de igual... – Mordiscou o lábio inferior. – Eu me sinto culpada por ela ter sido sequestrada... Deveria ter sido mais cuidadosa... Eu sabia que ele se aproximaria, sabia que alguém estava à espreita, mas acabei me distraindo... – Cerrou os dentes. – Se não tivesse me apaixonado, poderia ter continuado fria e isso me faria pensar melhor.

-- Você não poderia fazer nada... Nada se pode fazer contra o destino... A major deu de ombros.

-- Não acredito nessas coisas, creio nas minhas ações e no que deve ser feito, essas crendices que pregam não passam de ignorância... – Falou aborrecida. – Se assim o fosse, poderı́amos evitar os acontecimentos.

Piatã não parecia ofendido com as palavras, conhecia-a suficiente para saber como pensava, para saber como rejeitava a cultura da mãe, mesmo que, na maioria das vezes, deixasse a forma primitiva e selvagem dominar suas ações.

-- Ubiratã falou que você voltaria a viver se seguisse na empreitada e fora isso que aconteceu... Você passara mais de dez anos da sua vida vivendo em função de uma vingança... Fora movida pelo rancor, pelo ódio... Seu espı́rito hoje parece livre, e mesmo que negue, sabe que o pajé esteve certo o tempo todo.

Diana não respondeu, apenas permanecendo quieta, perdida.

Mataria o Crocodilo com suas mãos, daquela vez não deixaria que o desgraçado sobrevivesse. Apertou forte o remo ao imaginar o que Aimê estaria a passar...

 

 

 

Não demoraram muito para seguirem em meio à floresta.

Diana abria caminho, enquanto prestava atenção nos sons, sabendo que havia ameaças por todos os lados.

As folhas secas forravam o chão, podendo camuflar algum animal perigoso. Olhou sobre os ombros e viu o velho ı́ndio lhe acompanhar.

Mesmo com uma idade avançada, Piatã demonstrava total força e seus passos eram seguros.

-- Precisa parar e comer algo, princesa, precisa de energia. – Piatã advertiu-a. – Até agora só está bebendo água.

-- Não posso me dar o luxo de parar, preciso chegar rápido ao meu destino. – Respondeu, enquanto continuava a seguir.

 

-- Não esqueça de que precisará da permissão do pajé...

-- Mesmo que ele não me dê eu irei até Aimê, disso, você pode ter certeza!

 

 

 

Seguiram durante o longo dia e só a noite pararam, pois precisavam descansar para continuar o dia seguinte. Tinham conseguido dobrar a caminhada em pouco tempo e não demorariam para chegarem na aldeia.

Diana montou a fogueira e logo se deitou sobre a mochila, o ı́ndio apenas a fitava. Entregou-lhe um pão com carne seca e o cantil, depois se acomodou ao seu lado.

-- Por que não pede ajuda a Tupã? – Piatã indagou. – Você é a princesa daquela tribo e se não tivesse cometido tantos erros, seria você a chefe e não ele.

A Calligari fitou o céu estrelado. O abobado azul marinho tinha incontáveis pontos brilhantes, lembrando os vagalumes a brincar entre si.

Tinham escolhido uma clareira para passar aquela noite.

A major tinha a arma em mãos, pois sabia que um animal poderia atacar em frações de segundos.

A escuridão era intensa.

-- Nós sabemos que Tupã não permitiria jamais isso...

O ı́ndio ficou em silêncio durante alguns segundos, mas logo voltou a falar.

-- Eu não sei como vai fazer para atravessar a selva... Temo que se não mostrar humildade, dessa vez terá problemas sérios.

Diana enrijeceu o maxilar.

Não pareceu se preocupar com aquilo naquele momento, porém sabia que se fosse preciso, enfrentaria a todos, travaria uma guerra contra aquelas pessoas, mas chegaria até a Villa Real.

 

 

 

 

 

Aimê despertou assustada.

Passara toda a noite naquela cadeira e tivera medo de que em algum momento fosse violado por algum daqueles homens.

Ouvira as vozes das mulheres sendo usadas e enojou-se.

Já era madrugada quando o cansaço lhe venceu e acabou por cochilar. Viu a tenda abrir e o Crocodilo entrar.

O homem parecia mais assustador do que nunca e tinha nas mãos uma xı́cara de café. Sentiu o aroma.

-- Bom dia, princesa, como dormiu? – Parou de frente para ela. – Que tal um cafezinho? – Bebericou. – Soube que rejeitou a comida que mandei... Imagino que esteja estranhando as acomodações... Mas não se preocupe, para onde você vai, tudo é puro luxo.

A jovem nada disse, enquanto via ele se abaixar, começando a livrá-la das cordas que a prendiam à madeira.

-- Não faça nenhum movimento brusco, não quero danificar a mercadoria.

Aimê nada disse, enquanto seguia com o bandido.

Ficou surpresa ao ver tudo ao redor.

Era a primeira vez que via aquele lugar durante o dia.

Aquela área estava totalmente desmatada e percebeu que havia uma trilha por onde passava alguns veı́culos. Tinha dois caminhões parados e sobre eles muita madeira.

Mais três barracas estavam armadas.

Resquı́cios de uma fogueira estava no centro do espaço. Observou o olhar dos homens caindo desrespeitosos sobre si.

As  aparências  deles  eram  terríveis.  Tinham  armas  de  grande  porte  nas  mãos  e  pareciam  gostar  de  intimidar  os outros.

Percebia que também alguns dos que estavam reunidos ali, parecia ocupados serrando um tronco grande, enquanto outros cavavam um buraco.

-- Todos aqui já te conhecem, então não te apresentarei... A maioria serviu com bravura ao seu pai. – Sorriu. – Observe tudo ao redor, acha que a sua amada vai sair daqui com vida?

Aimê engoliu em seco e mais uma vez desejou que Diana não ousasse ir até ali.

Observou algumas mulheres deixando uma das barracas. Percebeu que uma e outra exibiam hematomas na face. Odiou-os ainda mais por aquilo!

Crocodilo caminhou até o buraco que estava sendo cavado.

-- Está vendo isso? – Apontou para o lugar. – Aqui será fincado um tronco e vai ser aqui que amarrarei sua major... Otávio fez a mesma coisa... Ele era criativo... – Olhou para o céu. – Ele deve estar se revirando no túmulo ao saber que a filhinha linda dele se encantou pela ı́ndia também.

A Villa Real sentiu uma angustia em seu peito.

Fitou aquelas pessoas e mais uma vez imaginou se o melhor não era se rebelar a ponto de ser morta, mas sabia que mesmo assim, a Calligaria iria ao seu resgate e de todo jeito seria cruelmente ferida.

-- Se você fizer o que eu pedir, com certeza vai fazer com que as chicotadas que darei na selvagem diminua... – Retornou até onde a jovem estava. – Está disposta a colaborar comigo?

-- Não a mate, por favor, eu imploro...

Crocodilo viu as lágrimas brilhar nos olhos azuis e percebeu que conseguiria o que tanto desejava. Sabia que nenhuma pancada doeria tanto quando o desprezo e desdém da Villa Real...

Faria a Diana sofrer muito antes de matá-la, esse era o seu plano.

 

 

 

 

 

Depois de uma caminhada sem tréguas, Diana e Piatã chegaram a aldeia ante do sol se pôr.

Alguns ı́ndios os escoltaram até o pajé que estava na tenda e para surpresa da Calligari Tupã se encontrava ali. O ı́ndio jovem e forte a encarou com raiva.

O pajé não pareceu surpreso com a presença da herdeira de Alexander.

 

-- A filha pródiga retorna? A segunda visita em menos de treze luas cheias... – Meneou a cabeça em desdém. – Como volta aqui? Ainda mais depois de ter desrespeitado o casamento de Ubirajara.

A pintora pareceu confusa, então se lembrou da visita da ı́ndia quando estava a convalescer do tiro que tinha levado.

Ubiratã se levantou do seu banco de madeira, ficando entre eles.

-- Princesa, acho melhor que retorne ao seu mundo... Não deveria ter vindo aqui. A morena ergueu a cabeça orgulhosamente.

-- Não vim arrumar problemas, na verdade, nem mesmo tinha a intenção de passar por aqui, mas sabia que seria desrespeitoso atravessar o território sem que me desse permissão.

O homem moço se aproximou, tentando intimidá-la, mas a Calligari não baixou a cabeça, fitando-o.

-- E desde quando você tem respeito por alguma coisa ou por alguém? – Tupã voltou a provocá-la.

 Mais uma vez o pajé se intrometeu.

-- Diana, você não deve ir até onde está Aimê. – Ubiratã a fitou. – Eu temo por sua vida. – Tomou-lhe as mãos nas suas. – Não terá chances sozinha contra esses homens... Fico muito feliz por sua bravura e coragem, fico feliz ao ver o amor brilhar em seus olhos que sempre só demonstraram frieza... Mas eu imploro que não vá até lá.

Tupã deixou a oca pisando duro.

-- Eu irei sim, está fora de cogitação retornar. – Cruzou os braços. – Agradeço a sua preocupação, mas agora mesmo seguirei caminho.

-- Pelo menos descanse, à noite já estará a cair e não é uma boa seguir viagem na escuridão.

-- Não, pajé, apenas quero me dê permissão para atravessar o território...

Ubiratã a fitou.

-- Princesa, não vá... Esse homem quer apenas sua destruição...

-- Eu não tenho medo! – Retrucou valentemente. – Apenas te pedirei algo... Você saberá quando eu falhar, então eu imploro por tudo, convença Tupã a ir em busca da Aimê, faça isso por mim...

Ubiratã fitou a jovem que viu crescer e teve aquela sensação de medo que não costumava sentir em relação a outras pessoas.

Sabia  que  apenas  uma  pessoa  poderia  salvar  a  Calligari  do  destino  que  a  esperava,  mas  já  temia  ser  impossível convencer o chefe guerreiro a fazer aquilo... a menos que...

Tentou espantar aquele pensamento conflituoso por enquanto, afinal, deveria ponderar se era o certo a se fazer.

Contrariando as leis da tribo, o bom ı́ndio a abraçou forte, desejando que tudo pudesse acabar bem.


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