A déspota - capítulo 30


                    Aquele não era um dia fácil para a cigana.

                    Embarcara cedo de volta a casa, nem mesmo conseguira descansar na noite anterior. Tivera que cancelar o voo que seria antes, pois necessitara de mais tempo para deixar tudo resolvido.

                    Sentiu a mão pequenina da filha tocar-lhe a face.

                Mirou aqueles cabelinhos, avermelhados, e cheio de cachinhos, fitou as bochechas rosadas que adorava beijar e por fim parou naqueles olhos tão intensos. De quem ela herdará aquele azul tão profundo?

                    Sentiu um frio percorrer a espinha ao recordar de outros que lembravam àqueles.

                Por alguns segundos seus pensamentos puderam seguir livres, algo que há tempos não permitia que fizesse.

                Três anos afastada de tudo, sem saber o que se passava em seu paı́s de criação, sem se importar com os que lá estavam. Em parte se sentia culpada, pois deixara o pai sozinho, mas quantas vezes pedira que ele fosse viver consigo na Espanha ou até na Itália, apenas era naquele lugar que não desejava estar.

                    -- Lê, mamãe.

                    A italiana foi tirada de suas divagações.

Viu a mão estendida da criança e sentiu vontade de matar o Arthur. Desde que ele contara à filha sobre as peripécias com a cigana, a garotinha insistia nessa brincadeira de quiromancia.

Puxou-a para si, enchendo-lhe de beijos, fazendo-a gargalhar.

Ah, como amava aquele menininha, como sua vida mudara desde que a tivera a primeira vez em seus braços, só ela lhe importava, seu maior tesouro.

 



 

-- O que você está fazendo aqui?

Maria Fernanda estava confortavelmente sentada no enorme jardim da casa do seu pai. O sol estava quase se pondo.

Não gostava de ir ali, já tivera inúmeras discussões com a madrasta e com o idiota do Lutho. Não o suportava, ele menos ainda, principalmente porque perdeu o controle dos negócios do pai devido a tudo que fizera contra a irmã.

A juı́za continuou a folhear a revista e ignorou por completo a mulher.

Esther a odiava!

Só a aceitara em sua casa, porque temia perder tudo, mas em breve daria um jeito naquela bastarda.

-- Não está me ouvindo falar, sua mal educada?

A déspota tirou os óculos e levantou a cabeça para fitá-la.

Não entendia o motivo de Luı́s Fernando continuar com aquela cobra em sua casa.

-- Olha, eu não tenho que te dar nenhuma satisfação e não esqueça que você não é ninguém para falar comigo desse jeito. – Falou calmamente.

-- Você é tão vagabunda quanto a sua maldita mãe.

Em frações de segundos, a arrogante mulher se viu agarrada fortemente pelos ombros.

-- Pelo menos ela era gostosa, coisa que você não é.

Maria Fernanda gargalhou alto ao ver a senhora ficar vermelha e seguir rapidamente para longe, parecia que conseguira acertar bem no alvo daquela vez.

 

Com o tempo aprendera a respeitar a mulher que lhe deu a vida, realmente, ela não fora perfeita, agira de forma que ainda custava entender, porém viver a remoer o passado não adiantava nada, era uma perda desnecessária de energia.

-- A Esther nunca vai aceitar sua presença.

A déspota ouviu aquele som melodioso e como sempre doce, era a esposa do Fernando, sua cunhada, alguém que no decorrer daqueles três anos se tornara o mais próximo de uma amiga que já chegara a ter.

-- Não me importo! – Apontou para que a jovem sentasse ao seu lado.

-- Eu sei que não, mas eu temo que um dia essas ameaças sejam concretizadas.

-- Não tenho medo dela e nem do filhinho mimado.

Patrı́cia sorriu.

Admirava aquele jeito forte e poderoso que a Maria Fernanda exibia, mas sabia que por baixo daquela armadura havia alguém sensível e que já sofrera muito na vida.

Recordava bem o dia que fora chamada pelo sogro para ajudar a cuidá-la e fora naquela época que ficara sabendo de todo o envolvimento que ela tivera com a ex-noiva de Lutho.

-- Onde você foi ontem? Sumiu da recepção... – Colocou um pouco de suco e serviu a ambas. – Esteve nos braços da sua loira?

-- Já te disseram que você é muito curiosa? – Tomou um gole da bebida.

-- Bem, foi uma pergunta retrógrada, pois todos viram quando você saiu à reboque da secretária.

Ambas riram.

-- Não há nada entre mim e ela. – Negou.

-- E ela sabe desse detalhe? – Arqueou a sobrancelha irônica.

Fernanda deu de ombros.

-- Não acho legal que fique usando a Catrina, ninguém merece esse tipo de tratamento.

Patrı́cia a viu desviar o olhar, já aprendera a decifrar bem aquele gesto. Era como se a mente da juı́za viajasse para outro lugar, divagando, perdida em si.

-- Não desejo machucá-la. – Encarou a outra. – Ando pensando se não seria uma boa ideia aceitar o amor que ela sente, quem sabe, dá certo.

-- Sério que estás a pensar nisso? – Indagou surpresa.

-- O que você acha da ideia?

-- Bem, eu não acho que a loira vai te fazer abrir mão de toda a lista de telefones femininos da sua agenda.

A juı́za sorriu.

Adorava conversar com a cunhada, achava divertido a forma como ela ficava horrorizada por suas aventuras. Tivera sorte em ter a encontrado e o mesmo podia dizer do irmão e do pai.





Eva chegou à mansão Belluti e teve a grata surpresa de encontrar o pai em casa.

Recebera permissão para continuar o tratamento em sua residência, havia uma enfermeira muito simpática o acompanhando. Entrou nos aposentos de Andrello, mas ele estava a dormir.

A última vez que o viu foi há seis meses, ele a visitaram em seu aniversário e já na época o semblante mostrava que estava muito cansado.

-- Ele ficará bem, senhorita. É um homem forte o seu pai.

A cigana virou-se e deu de cara com a mulher vestida de branco, ela tinha um ar maternal, doce, atencioso e paciente.

-- Sou Myrtes, estou responsável pelo paciente. – Estendeu a mão em cumprimento.

-- É um enorme prazer conhecê-la. – Ignorou a mão e abraçou a enfermeira.

 A mulher ficou surpresa.

A italiana sorriu e seguiu para fora dos aposentos.









-- Oh, mamãe, o que houve?

Fernanda estava retornando ao apartamento quando o celular tocou. Já era quase oito horas, passara todo o dia na casa de Luı́s.

-- Onde eu tenho que buscá-lo?

A ligação estava péssima, mas conseguira entender que Pedro precisava que ela fosse à mansão dos Bellutis. Ainda pensou em se negar.

Era um lugar que não tinha nenhum desejo de ir, mas já passara tanto tempo, precisava se libertar dos fantasmas do passado. Decidida, fez o retorno e foi ao resgate do pai.

 

 

 

 

-- Isa!

Eva estava desesperada, bastou se distrair por alguns segundos e sua filha sumiu. Sabia que a menina não poderia ter ido longe, mas a casa era muito grande e temia que ela caı́sse e se machucasse.

Aflita, vestiu o roupão e saiu em busca da garotinha.

 

 

A juı́za parou em frente ao grande portão, discou o número do pai, mas estava dando fora de área ou desligado. Não desejava entrar naquele lugar, só queria resolver logo aquilo e voltar para o apartamento.

Viu quando um dos seguranças se dirigiu até ela. Ele a conhecia.

-- Seu pai pediu que assim que chegasse eu a pedisse para entrar. Ele está resolvendo um pequeno problema, mas logo estará com a senhorita.

 Maria Fernanda ainda abriu a boca para protestar, mas decidiu fazer o que fora dito.

O homem retornou e poucos segundos depois, o enorme portão se abriu, dando passagem para o automóvel. A juı́za estacionou e saiu de dentro do veı́culo.

Observou a enorme mansão de três andares e sentiu um aperto no peito. Por um momento se permitiu lembrar o passado.

Encostou-se ao carro e cruzou os braços, estava frio.

Eva!

Respirou fundo e soltou o ar vagarosamente.

Naqueles três anos, ela buscara apagar da mente tudo que estivesse ligado à italiana, até mesmo evitara estar em lugares onde a lembrança dela era mais viva, mais intensa. Talvez, tenha tido um pouco de sucesso, afinal, não doı́a mais a separação, conseguira sufocar muito daquele poderoso sentimento...

Virou assustada ao ouvir algo parecido com um gritinho infantil.

Caminhou lentamente por meio as árvores e seguiu até onde parecia vir o som.

Estava escuro, mas a juı́za pegou o celular e iluminou o caminho e quase desfaleceu quando sentiu algo lhe abraçar a perna. Com o coração aos pulos, mirou para baixo e viu uma criaturinha olhando para si.

Não pode deixar de sorrir ao notar como a pequena exibia um ar travesso. Os cabelos ruivos e o brilho nos olhos denotavam bem isso. Mas quem seria ela?

 Fernanda agachou-se, ficando na mesma altura que a garotinha.

-- O que estás a fazer nesse lugar tão escuro? – Tocou-lhe as bochechas rosadas.

Engraçado, não recordava de ter tido um contato tão ı́ntimo com qualquer criança, mas naquele momento sentia uma sensação estranha dentro de si... carinho?... Como, se acabara de conhecer a pequenina?

A ruivinha segurou-lhe a mão e ficou a traçar as linhas, como se estivesse tentando... decifrar?

 

 

 

 

-- Nós, vamos encontrá-la, senhorita. – Repetia a governanta.

Havia um verdadeiro batalhão de empregados em busca da filha da italiana.

Eva sabia como a Isabely era travessa e não deveria ter permitido que ficasse um minuto sozinha. Estava acostumada com as peraltices, mas ali era diferente. A mansão era  enorme e já era noite e se ela caı́sse e acabasse se machucando.

Desesperada, seguiu para fora do casarão.

Foi pela área da piscina, mas não havia ninguém lá, graças a Deus! Continuou a busca até chegar numa parte mais escura, lugar onde dava para o estacionamento da casa. Conseguiu vislumbrar a pequenina de cabelo de fogo e saiu em disparada até ela.

 

A juı́za estava encantada com a garotinha, mas de repente alguém apareceu pegando-a abruptamente. Maria Fernanda levantou e o sorriso que antes tinha em seus lábios foi imediatamente apagado.

A cigana abraçou a filha até sentir a sensação de medo evaporar.

Quando mirou a pessoa que estava em sua frente teve a impressão que a qualquer momento seu coração sairia do peito.

Fazia tanto tempo...

Quantas vezes pensou que aquilo já havia passado, que não sobrara nenhum resquı́cios daquela mulher dentro de si... Fitou aqueles olhos intensos e parecia que aquele dia que a viu no aeroporto se repetia em sua mente.

Recordou das lágrimas que ela derramara, recordara da dor que vira naquele mar azul. Abriu a boca para falar algo, mas as palavras pareciam presas.

A déspota sentiu as batidas do coração acelerarem. Estreitou os olhos ameaçadoramente.

Não, não era uma ilusão, realmente a bela cigana estava parada em sua frente. Naquele momento uma raiva tomou conta de seu corpo.

Por que estava ali?

Arqueou as sobrancelhas em gesto de interrogação.

A filha de Belluti sentia a frieza presente naquela expressão.

-- Olá, Maria Fernanda. – Tentou soar naturalmente.

Ambas se encaravam como se buscassem o reconhecimento de algo que não ficara no passado...

-- Mamãe.

As duas fitaram a menina que parecia buscar soltar-se das amarras dos braços da jovem. A juı́za encarou-as, analisando as duas figuras.

A garotinha não lembrava à italiana, ela era ruiva e os olhos eram tão azuis... Mas o sorriso a fez recordar da época que conhecera a mulher que lhe roubara o coração.

-- Mamãe... – Insistiu a pequena.

-- Não, não te soltarei mais, fiquei louca te procurando por toda a casa. – Eva repreendeu a filha.

Fernanda apenas observava a cena, não conseguia falar nada, a boca parecia sem forças para pronunciar qualquer coisa.

-- Ah, santo Deus, que bom que encontrou a danadinha.

Pedro interrompeu os pensamentos da filha.

-- Ela estava aqui com a... – Hesitou. – Com a Maria Fernanda.

Mais uma vez os olhares se cruzaram.

Eva, naquele momento, se permitiu mergulhar dentro daquele azul. Não sabia o motivo, mas desejava intensamente saber da vida dela, de como ela estava depois de tanto tempo...

Havia alguém desfrutando de suas carı́cias... Encontrará alguém para amar?

Esse pensamento a incomodou tanto que chegou a sentir um aperto no peito.

-- Vamos, papai, tenho que resolver umas coisas ainda. – A juı́za se esforçou para pronunciar as palavras.

-- Ah, sim, perdoe tê-la incomodado, mas não tinha como voltar hoje.

-- Vamos? – Insistiu.

-- Posso ir, menina Eva?

-- Sim... Com certeza.

-- Tchau, pequena, se comporte. – O homem beijou Isabely.

Maria Fernanda apenas fez um gesto de cabeça e seguiu na frente. A italiana abraçou forte a garota.

Não pensara como seria quando tivesse que reencontrar a juı́za, nem tampouco imaginara que seu corpo se seu coração ainda reagiria com tamanha intensidade.

 

 

Maria Fernanda nem ao menos entrou na casa dos pais. Simplesmente seguiu cantando pneus, deixando um rastro pelo asfalto. Alguns quilômetros depois, parou no acostamento ou acabaria provocando um acidente.

Bateu forte na direção e xingou alto.

Aquilo não estava acontecendo. Jamais imaginara encontrá-la novamente e para piorar a situação, o maldito sentimento que a castigara durante tanto tempo retornara ainda mais forte ao seu peito.

Cobriu o rosto com as mãos.

Ela tinha uma vida, tinha uma esposa, tinha uma filha... A cigana que roubara seu coração...

Nem se esforçou para controlar as lágrimas... Nem se controlou para segurar a enorme dor que lhe feria.

 

 

Eva abraçou a filha.

A pequena tinha pedido para dormir consigo. Ainda estava a estranhar o ambiente, logo se acostumaria. Ainda não sabia quanto tempo ficaria, então não pensava em decorar um quarto para menina. Nem pode conversar com o pai, apenas ficou ao seu lado por alguns minutos até ele cair novamente no sono. A enfermeira explicara que fazia parte do efeito dos medicamentos, mas que em breve ele estaria bem.

Ouviu a Isabely ressonar e sorriu.

Aquele ser tão pequeno era o que tinha de mais precioso em sua vida.

Fechou os olhos para tentar conciliar o sono, mas sentiu dificuldade para respirar. Ela sabia o motivo, ainda estava em seu olfato o cheiro da juı́za. Ainda tinha a sensação daquele aromar invadir sua pele.

Como uma mulher conseguia ser tão linda?

Como alguém pode ser tão frio?

A expressão daquele olhar forte, o desprezo...

Não!

Precisava apagar aquela imagem, não poderia permitir que a déspota desestruturasse sua vida mais uma vez.


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