A dama selvagem - Capítulo 5


O dia já começava a nascer quando Diana entrou na oca.

Passara à noite fora.

Dormira sob uma árvore, tendo o frio da noite e o som dos animais noturnos como companhia.

Jamais daria o prazer a Tupã de entrar naquele jogo que ele costumava praticar.

Ele era seu primo e fora por ordens de seu pai, que na época era o chefe daquela tribo, que Diana fora banida.

Não gostava daquelas pessoas e tampouco dos seus costumes.

Otávio estivera ali, fora a sua procura com um batalhão do seu maldito exército e ele exigira um casamento em troca de paz...

O miserável enganara a todos...

O desgraçado tinha matado seu noivo...

Ela fugira dele e dos malditos sequestradores e devido a isso houve muita morte em toda tribo e ela fora acusada, fora culpada por não ter cedido ao desejo doentio daquele homem.

Sacudiu a cabeça tentando se livrar daqueles pensamentos caóticos.

Acordara quando ainda havia estrelas no grande abobado, arrumara as coisas que necessitaria para seguir viagem.

Tomou banho no rio, vestiu-se e agora estava ali parada diante do leito improvisado vendo a sua jovem esposa dormir como um anjo.

Parecia sempre tão calma, tão plena em seu jeito de agir que a irritava em demasia.

Ela era filha do homem que destruı́ra sua vida... – Esse era o seu mantra.

Tocou-lhe a face.

Foi como se uma corrente elétrica passasse por todo seu corpo de forma violenta.

Afastou a mão e passou alguns segundos fitando os longos dedos, parecia não os reconhecer.

Sua mente não estava bem...

Está naquele lugar isolado não era algo bom para uma mulher acostumada a aproveitar os prazeres da vida, alguém que não se importava se estava saindo com uma ou um tanto de amantes.

Mordiscou o lábio inferior, observando alguns ı́ndios lá fora.

Meneou a cabeça como se desejasse espantar os pensamentos ruins.

-- Aimê... – Chamou baixinho. – Aimê... – Disse mais firmemente.

Estava a ponto de ser mais brusca quando os olhos intensamente azuis se abriram em um misto de confusão e temor.

-- Levante-se e se vista, temos que ir embora! – Ordenou, mantendo distância.

A esteira tinha sido improvisada no chão e havia algumas palhas de coqueiro para que ficasse mais confortável.

A neta de Ricardo sentou.

Ainda utilizava as pinturas da noite anterior... Seu corpo praticamente despido...

Na tradição indı́gena os corpos das amantes eram limpos na hora da consumação do casamento.

Se a noiva aparecesse igual ao dia do enlace, significava que não havia amor entre as partes.

Voltou a prestar atenção na jovem.

Aimê bocejou demoradamente.

Não pareceu muito animada com ideia de deixar aquele lugar. Só em pensar em seguir por aquela floresta ao lado daquela ı́ndia canibal irritadiça e arrogante lhe dava grande desânimo.

-- Temos mesmo que ir?

-- Ah, não diga que gostou da vida selvagem e deseja morar aqui! – Debochou. – Vai andar nua como todo mundo? – Provocou-a arqueando a sobrancelha. – Vai comer gente também? – Gargalhou.

Aimê mordiscou o lábio inferior.

-- Na verdade só queria descansar um pouco mais...—Levantou a cabeça. – Tem certeza de que precisamos ir embora hoje? – voltou a perguntar.

-- Sim, mimadinha, temos que ir, então se levante e comece a se aprontar. – Entregou-lhe umas mudas de roupa. – Volto depois para te buscar e se não estiver pronta, te deixo aqui para ser transformada em uma selvagem... – Afastou-se, deixando-a sozinha.

-- Como você... – Falou baixinho a garota.

Deu um suspiro resignado, sabendo que não teria alternativa.

Teria que aguentar aquela mulher por mais alguns dias...

Sua esposa!

Estava sonolenta, pois não dormira direito... Ficara acordada até tarde imaginando se Diana voltaria para a oca e dormiria ao seu lado, pior, ficou a imaginar se ela chegaria a desejar a conceber aquela estranha união.

Levantou-se, ouviu passos e logo a paciente voz da esposa do chefe.

-- Posso ajudar você? – A ı́ndia perguntou. – Pensei que a princesa faria isso. – Disse, parecia aborrecida.

-- Não desejo que ela me ajude... realmente não seria algo bom...

A bela mulher colocou as mãos nos ombros da garota.

-- Aimê, você e a Diana estão unidas há tempos...

-- Desculpe, Sirena, mas não acredito nessas coisas... tenho certeza de que se a Calligari pudesse, me largaria nessa floresta.

Sirena esboçou um sorriso misterioso, enquanto a ajudava a se vestir.

 

 

 

 

 

 

Comeram algo e não demorou muito para seguirem.

Tupã permitiu que dois ı́ndios fossem com elas.

Dessa vez seguiriam pelo rio até o outro lado. Se não tivessem problemas, talvez chegasse à aldeia de Piatã em pouco tempo.

Pegaram a canoa e começaram o dia.

Aimê foi ajudada por um dos robustos rapazes que as acompanhava. Ele delicadamente auxiliou-a nessa tarefa.

A Calligari apenas ignorou a jovem, enquanto começava a traçar em sua mente os próximos passos.

Diana remava junto com os outros, enquanto em sua lı́ngua nativa questionava aos acompanhantes sobre a presença de traficantes.

Um deles falara sobre terem sido vistos no lugar onde elas foram encontradas e que eles continuavam rondando a região.

Miseráveis!

Não desistiriam tão facilmente!

Voltou a encarar a neta de Ricardo.

Ela parecia distraı́da e em certo momento a viu tentar colocar a mão na água, rapidamente a deteve.

-- Deseja ficar sem os seus lindos dedos? – Questionou de forma brusca. – Não estamos nas lagoas passeando, estamos em uma selva.

Ela virou a cabeça para fitá-la. Os olhos azuis estavam ainda mais brilhantes.

Aimê ainda abriu a boca para falar algo, mas acabou ficando calada.

A travessia continuou por um bom tempo.

Diana mantinha um diálogo com os companheiros, enquanto sua jovem esposa nada dissera.

Estranhara o fato da garota não ter falado nada em todo o caminho.

Fitou-a e teve a impressão que ela estava muito distraı́da.

Entregou-lhe o cantil para que bebesse água.

Ela agradeceu e nada mais disse.

O rio estava cheio, decerto pelas chuvas dos últimos dias.

Enquanto seguiam, podiam ver na margem alguns ı́ndios pescando ou alguns animais em busca de seu alimento.

O sol começava esquentar.

Diana passou a mão pelo rosto, sentia o suor entre os seios e em suas costas.

 

 

 

Aimê sentia o cheiro de água, o cheiro de peixe e ficava imaginando como seria aquelas paisagens.

Com certeza havia uma imensidão de árvores, matos... Será que poderia ver as grandes vitórias régias?

Suspirou alto!

Gostaria de ver as flores... Deveria ter inúmeros espécimes.

 

 

 

 

 

Ao cair da tarde chegaram ao outro lado.

Os ı́ndios foram embora.

Caminharam por mais algum tempo e em determinado momento um galho quase arranhou a bochecha de Aimê.

Diana parou, praguejando alto, enquanto tomava a mão da jovem e praticamente a arrastava até chegarem a uma clareira, deram a volta e seguiram para a frente de uma caverna menor.

-- Dormiremos aqui e amanhã cedo seguiremos. – Observou o local.

Algumas árvores estavam tombadas e ela seguiu para observar melhor, pois temia que elas tivessem sido derrubadas propositadamente.

Agachou-se, examinava com cuidado quando um bando de pássaro passou barulhentamente.

Fitou o céu.

Não demoraria a anoitecer.

-- Onde estamos?

A Calligari não respondeu, apenas continuou observando a região com atenção.

Havia mato para todo lado.

Observou o chão forrado de folhas e galhos.

Parecia buscar alguma ameaça, mas ao notar que estavam seguras, segurou Aimê pelo braço, levando-a para o interior do esconderijo.

Alguns morcegos saı́ram, parecendo assustados com as visitantes.

A Villa Real deu um gritinho, levando a mão ao peito.

-- Onde estamos? – Repetiu a pergunta sem fôlego.

Diana tirou a mochila das costas, colocando no chão.

Deu alguns passos e percebeu que o lugar era pequeno, tendo apenas alguns metros.

Levantou a cabeça, também não era muito alto, com certeza era o esconderijo de algum animal.

-- Em uma caverna! – Por fim, respondeu, enquanto começava a arrumar as coisas, ajeitando o leito improvisado e já começando a acender a fogueira, pois o lugar estava mergulhando na penumbra.

Aimê usava as mãos para explorar a área, tocava as pedras, tentando se familiarizar com o local.

-- Ela é como a outra? – Indagou com um sorriso, enquanto continuava a exploração.

-- Não, essa é menor e também não há cascata  nem lago! – Disse sem se voltar.

-- Que pena! – Falou desanimada.

A Calligari a fitou por alguns segundos.

Ela estava com os cabelos novamente trançados a lhe cair na lateral do peito.

-- Na verdade só temos essa parte que estamos. – Levantou-se. – Terei que improvisar uma porta, assim nenhuma onça faminta vai nos comer. – Pegou o punhal na bota.

-- Por que sempre diz essas coisas? – Aimê indagou com as mãos na cintura. – Parece que gosta de me amedrontar! Vem com a história de canibal que não passa de mentiras e mais mentiras...

A morena não gostou do que ouviu, deixando tudo de lado, tomando a herdeira de Otávio pelos ombros, pressionando-a contra a parede fria.

-- Está me chamando de mentirosa? – Apertou-a mais forte.

Aimê tentou se livrar, mas Diana era bem mais forte.

-- Apenas disse o que acho!

Os olhos negros se estreitaram de modo ameaçador.

-- Acha que está me confundindo com os Villa Real que só sabem mentir, trair, matar e depois mostrarem para a sociedade a face de pessoas boas.

-- Do que está falando? Não ouse falar assim da minha famı́lia...

Aimê conseguiu se livrar das mãos que a prendia e sem ter essa intenção, acabou arranhando a face da major com unhas.

Diana ao perceber o que tinha se passado, ainda levantou a mão para esbofeteá-la, mas acabou apenas empurrando, depois saiu de perto da jovem.

A garota sentiu as costas batendo na rocha.

Mesmo não enxergando, sabia o que tinha feito.

Jamais desejara fazer algo assim, mas perdera a cabeça diante das palavras que ouviu.

Aquela mulher tinha algo que parecia afrontar todos os seus sentidos, seu autocontrole, sua paciência.

Cobriu a face com as mãos.

-- Deus, me ajude!

 

 

 

Diana não voltou aquele dia para a caverna.Passara boa parte do tempo observando a região e algo a assustou.

Havia pegadas que não eram de ı́ndios.

Precisavam deixar aquela área o mais rápido possível.

O sol já estava nascendo quando voltou para o lugar onde deixara a refém.

Aimê estava sentada.

-- Vamos embora!

A jovem nada disse, apenas levantou, esperando que a Calligari terminasse de arrumar as coisas.

Mais uma vez passara uma noite em claro, assustada, faminta...

Sorte que encontrara um pedaço de pão na bolsa e fora o que comeu com alguns goles de água.

Desejava um banho... Desejava muito está em sua casa...

Diana colocou a mochila nas costas, depois tomou a mão da jovem, seguindo logo em seguida.

Nada fora dito durante a caminhada, mas a Villa Real percebia que a raiva da sua salvadora estava ainda maior, pois ela fazia questão de acelerar os passos, mesmo sabendo que a neta de Ricardo não podia seguir aquele ritmo.

Em determinado momento, ela tropeçou e foi ao chão.

-- Que merda, Aimê! Não aguento mais sua lerdeza, não aguento mais ter que sair te arrastando. Se não fosse você, eu já estaria bem longe, já estaria em minha casa. – Esbravejava cruelmente, enquanto a encarava. – Maldito Ricardo que não me disse que a neta era uma cega inútil.

A Villa Real nada disse, apenas continuou no chão.

-- Levante-se! – Tentou pegá-la, mas foi repelida. – Que merda, levante logo, não temos tempo!

-- Deixe-me aqui! – A moça disse em tom baixo sem se voltar. – Não desejo atrasá-la mais, senhora!

Diana colocou as mãos nos quadris.

Respirou fundo, enquanto fitava o céu.

-- Levante-se e vamos embora daqui, sua mimada estúpida!

Os olhos azuis se voltaram para a major.

A morena sentia o poder e a determinação presentes neles.

-- Achas que não tenho coragem de te abandonar nesse lugar? – Desafiou-a.—Achas mesmo que vou implorar para você vir comigo?

A Calligari exibiu um sorriso sádico, enquanto observava a região.

Estavam em meio à mata fechada.

-- Deixe-me aqui, princesa, não a incomodarei mais, não desejo continuar sendo um estorvo na sua vida. – Tentou segurar as lágrimas. – Agradeço por ter me salvado, mas agora pode seguir seu caminho.

Diana observou o espaço e ficou a imaginar quais chances aquela garota teria ali, mas mesmo assim, a estúpida insistia em seu desafio idiota.

Estavam cercadas das centenárias árvores, cercadas por animais... Havia insetos...

Ouviu o som do falcão e ignorou totalmente.

Com certeza ela merecia receber uma boa lição.

-- Ok, Aimê Villa Real, espero que faça uma boa viagem e retorne para sua famı́lia sã e salva. – Colocou o cantil em suas mãos. – Assim pelo menos não vai ser a sede que vai te matar.

Os olhares de ambas se cruzaram durante infinitos segundos, mesmo os azuis não conseguindo enxergar.

Diana mirou os lábios rosados, a veia que pulsava no pescoço esguio.

-- Nos encontramos na cidade! – Disse afastando-se.

A jovem apenas assentiu, enquanto ouvia passos.

Dobrou os joelhos, encostando o queixo neles, sentindo as costas se apoiar no enorme tronco.

O soluço que estava preso em sua garganta finalmente saiu, trazendo consigo um pranto incontido.

Nunca sua deficiência ficara tão evidente como naqueles últimos dias.

Há alguns anos, quando sofrera o acidente que a deixara cega tudo mudara drasticamente.

Primeiro porque ela ainda não tinha conseguido lidar com o que se passava quando recebera a notı́cia que o pai fora cruelmente assassinado, segundo porque precisara se adaptar uma nova realidade.

Escola especial, professores particulares para que assim conseguisse se adaptar.

O médico dissera que com o tempo conseguiria recuperar a visão através de uma cirurgia, mas as duas que tentara fora um total fracasso e por isso decidiu que não deveria viver em função disso, ainda mais porque o tratamento era muito caro e seus avós já tinham gastado mais do que tinham.

Fora isso que a fez seguir de forma a poder ajudar àqueles que tanto se dedicaram a si.

Mesmo contra a vontade do avô, decidira montar uma floricultura, aproveitava as lindas flores que cultivava para ganhar dinheiro e não depender de ninguém. Com o tempo, sua avó fora ajudá-la e agora já tinham um negócio sólido.

Nunca se sentira inútil, pelo menos não até ser sequestrada e salva por aquela mulher que fazia questão de mostrar como sua cegueira era um obstáculo.

Retirou a bota do pé esquerdo, pois estava machucando.

Sentiu-se aliviada.

Deu um longo suspiro!

O que faria agora?

Como sairia daquele lugar?

A floresta estava barulhenta. Era possível ouvir o som dos macacos e dos pássaros, porém de repente tudo ficou em total silêncio.

 

 

 

 

 

 

Diana caminhava a passos largos.

-- Que morra! – Falava em total exasperação. – Burra mimada, vai acabar morrendo dentro dessa mata.

Seguiu ainda por mais dez minutos até ouvir o grito fino da Villa Real.

Nem pensou um segundo, saiu em disparada pensando no que poderia ter acontecido com a jovem.

Ficou imaginando o que de ruim tinha ocorrido com a garota.

Sentia o coração aos pulos e imaginou se uma onça teria a atacado se chegaria há tempo para salvá-la.

Encontrou Aimê tentando se levantar, cambaleante.

Tocou-a, mas foi repelida.

-- Não!

-- Sou eu! – Voltou a tentar, mas foi empurrada novamente.

-- Deixe-me!

Diana observou a cobra que rastejava ali perto.

Sentiu um alıvio em sua alma quando viu se tratar de uma caninana.

Segurou-a, jogando-a longe.

Voltou a tocar na jovem.

-- Deixe-me ver. – Pediu delicadamente. – Sente-se.

Daquela vez a Villa Real cedeu, mesmo tendo a expressão temerosa e chateada.

Diana a ajudou a se acomodar e logo em seguida se ajoelhou, examinando o tornozelo.

Mirou a picada.

Havia sangue e começava a inchar.

Mesmo não sendo venenosa, decerto aquilo ficaria ruim e ela não poderia forçar.

Fitou os olhos azuis e sentiu um aperto no peito, coisa que não costumava acontecer, ainda mais diante da filha de Otávio.

A morena pôs-se a massagear a pele sedosa.

-- Está doendo?

Aimê assentiu.

-- Ela era venenosa? – Questionou receosa.

Inconscientemente a Calligari continuava a acariciar a pele da jovem, encantada com a seda em seus dedos.

A garota teve a impressão que havia algo andando por dentro do seu estômago diante do toque.

-- Não, felizmente não, pois se assim o fosse terı́amos problemas. – Fitou-a. – Vamos ter que ficar aqui hoje, não vai poder forçar.

Aimê puxou a perna delicadamente, fazendo cessar as carı́cias.

-- Mas, você disse que não era venenosa... Está queimando...

Diana se levantou com um suspiro.

Parecia um pouco constrangida.

Talvez pela primeira vez desde aquela empreitada, sentisse culpada por algo, coisa que não era comum.

Passou a mão pelos cabelos.

Fitou a pequena caverna.

O melhor a fazer era retornar e esperar que tudo estivesse bem. Se seguissem, correria o risco da Villa Real acabar não conseguindo concluir a caminhada.

-- Ficaremos hoje e amanhã se você acordar bem, partiremos ao amanhecer.

Segurou-lhe a mão, ajudando-a a levantar, depois pegou a bota, entregando-a.

Caminharam juntas até o abrigo.

-- Está dormente... – A garota falou.

Diana a deixou encostada a rocha, enquanto mais uma vez montava um lugar para que ela se deitasse.

Auxiliou-a a se acomodar, usando a mochila como travesseiro.

-- Provavelmente você terá febre, mas passará logo. – Ajoelhou-se diante dela, tocando a braguilha da calça.

-- O que está fazendo? – A Villa Real lhe deteve o movimento.

A calligari observou os dedos longos tocarem os seus e mais uma vez teve a impressão que levava um choque elétrico.

-- Calma! – Fitou os olhos intensamente azuis. – Preciso te livrar desse jeans apertado, assim o ferimento vai poder melhorar logo. – Esboçou um sorriso cı́nico. – Não se preocupe que não vou consumar nosso casamento agora, ainda mais você tendo sido picada por uma cobra.

A morena teve vontade de gargalhar alto ao ver as maçãs ficarem vermelhas, corada e com aquela expressão de menina assustada.

Observou os lábios entreabertos...

Desviou o olhar...

Desabotoou e se aproveitando da cara de medo que ela exibia, livrou-a das vestes, deixando-a apenas de calcinha e sutiã.

Pegou o cantil e começou a lavar o machucado.

Aimê estava apoiada nos cotovelos, tendo o olhar voltado para a pintora como se pudesse vê-la.

-- Pronto, agora descanse que você vai ficar bem logo. – Levantou-se.

-- Obrigada.

Diana meneou a cabeça negativamente.

-- Preciso que fique aqui, enquanto pego lenha para fazer uma fogueira. – Passou as mãos nos cabelos negros. – Talvez eu cace algo, a carne assada que a Sirena deu só deve dar para hoje.

-- Não quero que demore, não quero ficar sozinha aqui.

-- Ok, tentarei não demorar e estarei por perto é só gritar se precisar.

Aimê assentiu, enquanto ouvia passos se afastarem.

Droga!

Se não tivesse sido teimosa nada daquilo tinha acontecido e naquele momento estariam seguindo viagem, assim retornariam para casa mais rápido.

Gemeu quando foi mexer a perna.

Esperava que no outro dia já estivesse recuperada, pois o que mais desejava era esquecer tudo aquilo que passou e também Diana Calligari.

Suspirou, mordiscando o lábio inferior.

Aquela mulher era diferente de todas que conhecera. Além disso, agia com prepotência e arrogância o tempo todo, fazendo questão de feri-la com os mais cruéis comentários, com atitudes grosseiras e intimidantes, porém em outras ocasiões parecia diferente, como se tivesse alguma importância...

Ficava a pensar como o avô pôde mandar alguém com uma personalidade tão ruim para ir ao seu resgate?

 

 

 

 

Diana não foi muito longe, distanciando apenas alguns metros do esconderijo.

Fitou o céu azul.

Não havia sinais de tempestades, mas era normal naquela região sempre chover.

Tudo é tão verde, o ar é tão puro.

Respirou fundo!

Mirou as árvores gigantes, as espécies e as variedades de flora.

O canto dos pássaros eram músicas constante.

Observou um tucano.

Sorriu, recordando de quando era uma menina e corria por aquela terra perigosa.

Começou a buscar por lenha, sempre havia algumas que você poderia pegar sem precisar de ferramentas mais pesadas.

Mirou alguns macacos se pendurando e brincando um com os outros.

Ficou parada olhando, adoraria estar com suas tintas e seus pinceis, com certeza teria uma obra lindı́ssima para exibir.

Sentia saudades de ficar horas tentando captar a beleza das coisas, sempre estava a criar algo.

A pintura fora a forma que encontrara para seguir em frente, fora a forma que encontrara para se livrar dos pensamentos perturbadores...

De repente seus pensamentos se voltaram para a neta de Ricardo.

Algo que ela não desejava admitir estava lhe perturbando demais, algo que ela jamais aceitaria, mesmo sentindo os sinais cada vez mais fortes.

Sentou em uma rocha.

Aimê tinha algo que não conseguia explicar.

Aqueles olhos tão azuis mesmo sem vida eram tão penetrantes, inocentes, doces, pacientes... Tudo o que a morena detestava em alguém, porém havia muito mais...

Umedeceu os lábios e teve a impressão que ainda sentia os dela...

Como seria beijá-la?

Como seria transar com ela?

Exibiria aquele jeitinho na hora do sexo também?

Passou a mão pelos cabelos, jogando-os para trás.

Precisava  sair  daquele  lugar  o  mais  rápido  possível,  pois  esse  isolamento  a  estava  deixando  muito  receptiva  aos encantos da filha do homem que mais odiava em todo o mundo.

Decidiu continuar a fazer o que era preciso, já se demorara bastante.

Diana encontrou algumas frutas e trouxe para a caverna.

Aimê estava a dormir.

A morena se aproximou, observando o ferimento.

Apesar de estar um pouco inchado, a aparência não estava tão ruim.

Sorriu ao perceber que ela tinha colocado a calça por cima do corpo, tentando esconder a beleza ingênua.

Tocou-lhe a face e viu que estava um pouco febril.

Já esperava por aquilo.

Pegou uma coberta fina na mochila, cobrindo-a.

Prepararia a fogueira e faria um chá para a jovem.

Colhera algumas ervas que tinham um bom efeito para combater esses sintomas.

Precisava também fazer algo para fechar a entrada da caverna ou mesmo camuflá-la, pois ainda não acreditava estarem salvas dos bandidos, sem falar em animais que poderiam seguir até ali.

 

 

 

 

 

Já era noite quando Aimê despertou.

Antes acordara apenas para comer algo e depois voltou a dormir. Sentia-se cansada, sem forças e a Calligari falou para ela descansar, assim ficaria melhor.

Apoiando-se nos braços, sentou-se.

Sentiu cheiro de café.

-- Como se sente?

A voz rouca e forte a assustou.

-- Estou melhor!

-- Ótimo! – Diana sentou junto a ela, entregando-lhe uma xı́cara, pão e carne seca. – Coma! Sua febre passou, espero que não retorne mais, assim viajaremos amanhã.

Aimê fez um gesto de assentimento com a cabeça.

-- Parece que dormi durante um século. – Tomou um pouco da bebida. – Meu calcanhar não está doendo e a dormência passou.

-- Isso é perfeito! – Levou um pedaço de pão à boca enquanto mirava as chamas da fogueira.

-- Já é noite?

-- Sim, faz algum tempo que o sol foi coberto pela escuridão.

A Villa Real se ajeitou melhor na desconfortável cama improvisada.

-- Aqui deve ser um lugar muito bonito... – Dizia pensativa. – Lembro-me de que adorava ver documentários sobre as florestas, ficava encantada com o verde... Ouço os pássaros... Devem ser lindos.

A morena a encarou.

Os cabelos intensamente negros estavam em desalinhos, a trança já estava quase totalmente desfeita.

Observava a expressão cheia de tranquilidade, mesmo estando naquelas condições.

Desejou toca-lhe a pele branca... Mesmo com aqueles dias de sol, ainda lembrava uma porcelana fina.

-- Sim, é muito bonito, mas é uma beleza perigosa e traiçoeira.

-- Por que diz isso? – Os olhos azuis se guiaram pelo som, virando para a face da Calligari. – Eu ainda não acredito que seja ı́ndia.

Diana circulava a borda da xı́cara com o indicador.

Parecia pensativa, talvez relembrando o passado.

Nada fora dito durante algum tempo, até que a voz rouca se fez ouvir.

-- Minha mãe era a rainha de uma tribo de guerreiros... Ela casara muito jovem e seu marido morreu em batalha contra os brancos...

-- Rainha... – Disse admirada. – Pode me contar mais? – Pediu com os olhos brilhando.

Diana bebeu um pouco do lı́quido escuro, depois continuou.

-- Meu pai é filho de uma famı́lia muito rica, descendência alemã, mas nasceu no Brasil... Meu avô o colocou para estudar em uma escola militar e em uma das suas explorações ele encontrou a tribo da minha mãe, na verdade ele se perdeu e acabou sendo reféns deles. – Esboçou um sorriso ao se lembrar de como o pai adorava contar aquela história. -- Mesmo, eles vivendo isolados, aprenderam a ter um pouco de civilização, deixando para trás o canibalismo...

-- Então essa coisa de canibal é verdade?

A morena teve vontade de gargalhar diante do olhar amedrontado que a moça exibia.

-- Sim, não é história. Eles eram canibais, mas com o tempo deixaram suas raı́zes e seguiram por um caminho diferente... Meu pai se apaixonou por minha mãe, amou-a durante algumas luas e ela engravidou... A tribo não aceitara, então ela fugiu com ele para a cidade...—A Calligari suspirou alto. -- Ela não se adaptou, então quando eu nasci, ela retornou para cá...

Diana ainda sofria por ter crescido sem o amor materno.

-- Nossa...

-- Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos... Meu pai não tinha permissão para entrar na tribo, então eu nunca a vi... Quando eu tinha doze anos o pajé pediu que meu pai me trouxesse, fiquei sob a guarda dele...

-- Como seu pai permitiu?

-- Ela não tinha escolha, Aimê, esses ı́ndios podem ser bastante cruéis quando querem, então foi preciso fazer um pacto.

A Villa Real fez um gesto afirmativo com a cabeça.

-- Então ficou com a tribo da sua mãe...

-- Não, fiquei com outra tribo, pois a da minha mãe não aceitaria a minha presença se antes eu não fosse treinada e mostrasse ser digna do sangue que tinha...

-- Caramba, que história! – Colocou a xı́cara de lado. – E como foi se adaptar a esse lugar?

Diana mirou os lábios rosados...

Observou-a umedecê-los... Eram tentadores... Pareciam uma iguaria rara...

Sem pensar em seus atos, aproximou a boca de forma grosseira, pegando a jovem de surpresa.

Aimê espalmou as mãos nos seios da major, tentando empurrá-la, mas a morena foi ágil, segurando-lhe os braços, enquanto buscava acesso à boca da filha de Otávio.

A Villa Real cerrou os dentes, tentando lhe barrar a entrada, mas ao sentir a lı́ngua contornar seus lábios de forma mais delicada, sentiu um arrepio na nuca e por alguns segundos permitiu que aquela mulher fizesse o que desejava.

Uma carı́cia que beirava o precipı́cio...

A boca firme era dominadora, instigante, cruel e ao mesmo tempo apaixonante.

Sentiu a lı́ngua explorando...

Jamais fora beijada daquele jeito... Jamais fora atacada daquela forma...

De repente, Aimê despertou daquele encantamento, empurrando-a, conseguiu se livrar do contato.

-- Está louca!

Diana esboçou um sorriso sarcástico.

-- Somos casadas, querida, cedo ou tarde esses laços devem ser estreitados! – Debochou.

-- Não sou nada... – Apoiou-se nas paredes para se levantar. – Se tocar em mim novamente... – Sacudia o indicador no ar em tom ameaçador.

-- Vai fazer o quê? – A morena questionou calmamente enquanto tomava um pouco mais de café.

-- Eu vou... Eu vou... Eu vou embora daqui e você vai ter que explicar ao meu avô por que voltou sem mim.

Diana gargalhou.

-- Eu não costumo dar satisfações da minha vida para ninguém, mimadinha, então suas ações seriam inúteis. – Fitou-a. – Agora volte a sentar para não forçar essa perna. – Ordenou.

-- Se você ousar me tocar novamente... – Continuava a gesticular bravamente.

-- Não me ameace! – Disse por entre os dentes. – Sente-se ou te jogo lá fora para dormir com os animais.

-- Prefiro dormir com eles de que contigo... Prefiro ser comida por uma onça...

Diana se levantou, segurando-a pelos ombros, pressionando-a contra a pedra fria.

-- Termine a sua preferência... – Pediu de forma gentilmente perigosa.

A respiração de Aimê era pesada, a morena via o vermelho tingir a face bonita

-- Prefere ser comida por uma onça que por mim... – Debochou. – Não se preocupe que não tenho essas intenções, então se deite e durma, amanhã sairemos cedo e nada me fará ficar aqui mais um dia. – Soltou-a, afastando-se.

A Calligari deixou a caverna, pois sabia que não seria nada seguro ficar naquele lugar.


Comentários

  1. Eu amo demais a ambientação dessa história, me sinto dentro da floresta. A contrução das personagens também é muitoooo interessante.

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