A dama selvagem - Capítulo 1


O dia estava quente e o sol brilhava com os primeiros raios da manhã.

Otávio deixou à cabana.

-- Amarrem-na! – A voz cruel ordenou.

Diana tinha o olhar turvo de tanto apanhar, mas mesmo assim conseguia perceber o que se passava.

Há dias estava naquele lugar, há dias vinha sendo espancada por não se curvar àquele homem cruel.

Ela e seu noivo foram atraı́dos sob a desculpa de um treinamento especial para uma operação de resgate.

Mentira!

Cerrou os dentes para não gritar alto.

Seus ossos pareciam terem sido retirados do lugar. A boca estava seca, necessitava de um pouco de água.

Os homens a arrastaram.

Todos se divertiam diante do que acontecia, parecendo não se importar com a dor alheia. Estavam felizes, afinal, muitos daqueles odiavam a filha de Alexander. Muitos a viam como uma jovem arrogante que ocupara o posto de major por ter o sangue de um homem tão poderoso, eles se negavam a ver como a bela morena era disciplinada e esforçada e como tivera que lutar muito para chegar onde estava.

Ela mordeu o lábio inferior para não gemer.

Por um momento teve a impressão que suas pernas tinham sido cortadas.

Não tinha mais forças!

Lutara bravamente, enfrentara vários soldados, mas sucumbira diante da maioria.

Observou tudo ao redor, buscando uma saı́da... Mas ali era bastante isolado para que alguém aparecesse.

Estavam em um campo de treinamento.

Havia uma cabana de caça, soldados armados, barricadas, piso batido e ao centro havia dois troncos fincados. Um ocupado por ela, outro por seu amado.

Sentia o sabor do sangue em sua boca mesclado ao suor.

Estava tão quente..

Levantou a cabeça, fitava o céu...

As madeixas negras estavam coladas a seu rosto pelo suor e pelo sangue dos machucados.

Fora totalmente abandonada...

Sentiu um chute no abdome.

Orgulhosa levantou a cabeça.

Sempre fora uma jovem arrogante, forte e que jamais se curvava a nada e nem a ninguém.

Então seus olhos encontraram aquele ser desprezível.

Jamais imaginara que aquele doente chegaria àquele ponto...

O queixo da jovem fora levantado violentamente.

O coronel Otávio Villa Real observou-a atenciosamente.

Mesmo diante de todos os machucados, a beleza da major Calligari continuava a reinar.

Desde que a viu pela primeira vez ficara totalmente louco por ela, mesmo sendo tão nova, tinha uma força e charme que poucas exibiam.

Fitou os olhos intensamente negros... Eles eram misteriosos, grandes e repuxados.

Uma ı́ndia? Seria realmente ela isso como alguns diziam...

Tentou beijá-la, porém ela se desvencilhou, cuspindo na face dele.

Otávio levou a mão ao rosto.

Excitava-se com aquele gênio tão forte, excitava-se quando ela agia como uma dama da alta sociedade.

Cordata e selvagem!

Um animal que parecia ter sido moldado.

Com a mão fechada socou com toda força a bela garota.

Gargalhou alto, enquanto seus homens aplaudiam.

Não quisera feri-la, queria-a em sua cama, mas ao descobrir que ela estava noiva do tenente Eduardo não conseguira aguentar e acabou perdendo todo o controle.

-- Veja o homem fraco que você escolheu para ficar ao seu lado! – Desdenhava. – Se tivesse me aceitado nada disso teria acontecido. – Tocou-lhe o lábio inferior que estava cortado. – Uma verdadeira pena... Formarı́amos um belo casal juntos...

– Com a faca arrancou os botões da camisa, deixando à mostra o sutiã rendado e branco. – Princesa Diana... É assim que aquelas pessoas te chamam... Princesa Diana...

Exibiu um sorriso demonı́aco, enquanto feria-a, observando o sangue jorrar da pequena ferida.

Passou o indicador sobre o lı́quido vermelho, depois levou até a boca, lambendo, enquanto não deixava de olhá-la.

Diana tentou falar, mas a voz parecia presa, tentou mais uma vez e agora pareceu conseguir.

-- Eu... Eu odeio você... Odeio... Odeio...Um dia pagará por tudo...

Ela sentia que a qualquer momento perderia a consciência. Viu o homem que amava ser cruelmente espancado, sabia que não teriam muita chance de sobreviver, afinal, estavam longe e ninguém iria contra a vontade do maldito Otávio.

Tentou se soltar das cordas, ainda acertou um chute nas partes baixas do coronel e mais uma vez recebeu um soco no rosto.

-- Vagabunda indı́gena! – Levantou-se com a arma em punho. – Vejam todos vocês, essa é a dama, essa é a bela senhorita que frequenta a alta sociedade... – Atirou para cima. – Não passa de uma ı́ndia selvagem... Uma maldita ı́ndia que tomou o lugar de vocês... – Cuspiu. – Permitirão que ela seja superior a vocês? Permitirão que ela dê ordens a vocês?

Os soldados começaram a murmurar ao mesmo tempo, xingando a garota.

A morena segurou o gemido de dor. Não demonstraria fraqueza diante daquele ser insensível.

Ouviu a voz do namorado chamando seu nome.

Ele fizera como tantas vezes que buscara livrá-la de sua ira.

Um dos soldados o soltou e o saiu arrastando até onde eles estavam. Fê-lo ajoelhar diante de Otávio.

Ele estava tão machucado que sua fala mal dava para ser entendida, apenas esboçou uma expressão que lembrava um sorriso.

Aquele rapaz fora seu protetor, ajudando-a em seus piores momentos.

Tudo estava pronto para que seu casamento acontecesse dali a dois meses, porém agora tudo estava acabado.

-- Solte-o... – Disse cuspindo sangue. – Juro que o matarei, que vingarei o que está fazendo hoje.

Otávio lhe segurou os cabelos, obrigando-a a mirá-lo.

-- Você será minha... – Apontou a arma para o tenente. – E depois que me satisfazer contigo sobre o corpo do seu namoradinho, te venderei como escrava... Uma pena realmente!

Diana ouviu o som do estalido, sentiu a cabeça rodar ao notar o que acontecia.

 

Antes de desmaiar a última imagem que viu foram os olhos abertos e sem vida do noivo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dez anos depois...

O salão estava cheio de pessoas elegantes. Um verdadeiro desfile de trajes feitos pelos melhores estilistas.

Homens e mulheres pareciam embevecidos diante dos quadros que estavam sendo expostos.

Alguns garçons serviam o melhor champanhe e aperitivos aos convidados.

A nata da alta sociedade parecia maravilhada com a exposição.

No primeiro andar, apoiada ao espaldar de madeira uma bela morena observava tudo. Sua face bonita demonstrava total falta de interesse.

Linda, rica e talentosa, porém nada daquilo satisfazia aquela mulher que ocupava um espaço naquele mundo. Alguns a olhavam com curiosidade, outros a condenavam, mas poucos tinham coragem de apontar o dedo para a herdeira de um homem tão importante, mas a maioria o fazia por suas costas.

-- Eu daria todos os anos da minha vida para saber o que se passa por trás desses lindos olhos. – Entregou-lhe uma taça.

Diana fitou-a por alguns segundos e depois retornou a posição de antes.

-- Seus quadros fizeram bastante sucesso, mas já sabı́amos disso.

Vanessa era sua empresária.

Conhecera-a há muito tempo. Era uma mulher de seus quarenta anos, roliça, elegante, casada e que preferia ter cachorros a filhos.

-- Que bom! – Disse sem interesse, bebericando um pouco.

Não parecia sentir o sabor da bebida cara.

-- A imprensa deseja você, eles querem que dê uma entrevista.

A pintora fitou as bolhas do lı́quido como se fosse uma bola de cristal. Parecia querer ver algo.

-- Eu não tenho nenhum interesse de falar com esses abutres! – Encarou-a com aquele olhar de desprezo.

-- Diana, você deixou de ser a filha de Alexander Calligari para se tornar uma talentosa artista conhecida mundialmente. – Dizia pacientemente. – Você tem muitos fãs.

A morena continuou calada, perdida em seus pensamentos.

Ela se afastou, descendo elegantemente as escadas. Aproximava-se de um dos seus quadros quando alguém que ela conhecia bem se aproximou.

-- Preciso que venha comigo, senhorita!

Diana estreitou os olhos de forma ameaçadora... Mas não se negou a seguir com o homem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O general Ricardo andava de um lado para o outro em seu escritório.

Estava em sua mansão na cidade, tentando resolver o que se passava. Passara tanto tempo fora e agora ali estava sendo perseguido pelo passado.

A esposa se descabelava em total desespero.

-- Não posso perdê-la como perdi meu filho! – Dizia chorosa, enquanto se desesperava em lágrimas. – O que farão a ela? Ela não merece passar por isso depois de tudo que enfrentou em todos esses anos. Por que fizeram isso? Todo o dinheiro que demos não foi suficiente para sanar essa maldita dıvida?

O marido pensava naquele desabafo.

Passara todos aqueles anos tentando manter a neta protegida e para isso tiveram que empenhar quase todos os bens, restando-lhe apenas pouca coisa para tentarem recomeçar.

-- Não vamos perdê-la! – Bateu com a mão fechada sobre a mesa. – Nem que eu tenha que fazer um pacto com o demônio!

Ouviu-se o som da porta e depois de algum tempo apareceu dois soldados acompanhando uma bela mulher.

O homem a fitou por longos segundos, encarando os olhos frios e brilhantes, conseguia ver o ódio presente neles.

Sim, ela ainda os odiavam, mesmo depois de tanto tempo.

Conhecera-a quando ainda era uma menina, quando seus ralos cabelos negros se sobressaiam a sua pele bronzeada,

Observou-a erguer a cabeça em tom de desafio e arrogância, mirou os lábios rosados se torcerem em total desdém.

Aquele fora um dos motivos de ter deixado o paı́s, pois sabia que a herdeira dos Calligaris não descansaria enquanto não obtivesse a sua sonhada vingança.

Fez um gesto para que ela sentasse, mas foi ignorado.

Notou os trajes de noite que ela usava.

Um vestido vermelho sangue delineava o corpo alto, magro, mas com curvas tentadoras.

O tempo a deixara ainda mais bonita.

Fora aquela beleza a culpada de todas aquelas desgraças!

Em frações de segundos viu a esposa se ajoelhar diante da visitante, segurando-lhe as pernas, molhando o sapato caro com sua dor.

Diana não se moveu, tampouco demonstrou algum tipo de piedade.

Insensível!

-- Salve-a! Eu imploro!

Por um momento, pôde-se notar a confusão naquela ı́ris, depois apenas a indiferença voltou a prevalecer.

Ricardo foi até a sua companheira, segurando-a carinhosamente. Enquanto a tirava, mirou o desprezo no olhar da morena.

Ela caminhou até a janela, observou a noite escura e sem estrelas.

Fora tirada de uma exposição pelos soldados daquele homem, precisara abandonar seu trabalho para estar ali, para encontrar aquelas pessoas que mais odiava em todo aquele universo.

Fitou o Rolex que descansava em seu pulso.

Quase vinte e duas horas!

Sua exposição fora um sucesso, seus quadros tiveram uma grande aceitação como já era de costume.

Tornara-se uma grande artista plástica, mesclando a arte contemporânea com um surrealismo abstrato e sensual.

Diana Calligari fora agraciada pela crı́tica com seu talento, mas sua arrogância era muito mais explorada e mais noticiada pela mı́dia, tanto quanto o escândalo que se abateu sobre sua famı́lia.

A morena de olhos penetrantes era filha de um conhecido coronel. Tivera uma vida itinerante, morando em grande parte do mundo, vivendo em floresta, em acampamentos em meio ao nada. Sua formação lhe rendera muitas honrarias, porém ao final de tudo fora acusada de traição e expulsa das forças especiais.

Seu pai não suportara a vergonha cometendo suicı́dio.

Alexander Calligari tivera uma ú nica descendente e muitos pensavam que fora criada em um laboratório, uma fertilização em meio a tantos insucessos, mas a história era outra. O homem pertencente à alta sociedade, um verdadeiro cavalheiro se envolvera com uma jovem ı́ndia selvagem.

Levou a mão aos cabelos, sentindo a maciez das madeixas.

Voltou a fitar os anfitriões!

O que eles queriam?

Irritou-se com o som dos soluços, irritou-se ao ver o olhar de sú plica que lhe foi dirigido.

Caminhou até a poltrona, sentando-se de forma elegante, cruzando as pernas longas.

Observou o pomposo escritório, o enorme quadro que decorava a parede central.

Sua obra!

Aquele fora a primeira que criara...

Sua atenção fora tirada por uma fotografia de uma bela jovem.

Conhecia-a!

A filha de Otávio!

Vira-a algumas vezes, decerto hoje já não era mais uma menina.

Torceu o nariz em desagrado.

-- Diga de uma vez por que mandou me trazerem até aqui e agradeça por estar vestida como uma dama, pois se fosse o contrário, eu já teria acabado com a sua maldita raça!

A voz rouca, baixa era demasiadamente sensual, combinando com a dona.

Ricardo ajudou a esposa a sentar, em seguida foi até onde estava a jovem.

-- Preciso que me ajude!

Os olhos negros se estreitaram de forma ameaçadora.

Indignada, levantou-se.

-- Como ousa me trazer aqui para me pedir ajuda? Só pode ter enlouquecido! Nunca eu o auxiliaria em qualquer coisa que fosse!

Mais uma vez a voz chorosa de Cláudia que dessa vez não foi totalmente ignorada pela filha de Alexander se fez ouvir.

Por alguns segundos ela fitou o rosto sofrido da mulher, mas não demorou muito para recuperar a postura costumeira.

-- Por que acha que eu faria isso? – Questionou com um leve arquear de sobrancelha.

O general cobriu o rosto com ambas as mãos, em seguida puxou uma cadeira, sentando diante dela.

-- Eu a salvei um dia... – Falou de forma dolorosa. – Eu a resgatei, protegi você...

O discurso emocionado foi interrompido por uma sonora e debochada gargalhada.

 

 

-- Protegeu-me? – Disse entre o amargo riso. – protegeu-me! – Meneou a cabeça de forma sarcástica. – Você não me protegeu do doente do seu filho! – Disse por entre os dentes. – Permitiu que ele fizesse o que desejava e não moveu um único dedo. Permitiu que todos me acusassem de traição, viu meu pai tirar a própria vida e nada fez e ainda deseja que o ajude?

Ricardo baixou a cabeça por alguns segundos, em seguida voltou a fitá-la.

Era percebível a dor que ele sentia naquele momento, o desespero era tão grande que ele recorreu à única pessoa que ele sabia que não o ajudaria, mesmo assim, tentaria persuadi-la a fazê-lo.

-- Jamais imaginei que ele seria capaz de chegar tão longe... – Disse baixinho. – Eu te resgatei... Se não fosse por mim você teria tido um fim terrível... Mas eu não podia manchar a imagem do meu filho...

Diana se levantou, caminhando até a janela mais uma vez.

Precisava de ar fresco, pois tinha a impressão que estava sufocando.

Deu as costas para eles, pois não desejava que vissem sua fraqueza, não desejava que percebessem como aquelas lembranças eram terríveis.

Otávio quando caiu em si do que tinha feito, tentara de todas as formas se livrar de qualquer prova que pudesse lhe incriminar, encontrando uma ótima saı́da ao entregar a jovem para uma facção colombiana que costumava ser muito cruel com as mulheres, usando-as, escravizando-as e vendendo-as para o oriente médio.

Mordiscou o lábio inferior.

-- A minha neta passará o mesmo que você passou se não me ajudar...

A voz do homem interrompeu seus pensamentos.

-- Eu darei o que desejar para que a traga de volta com vida...

Diana ouviu a voz de Cláudia, voltou-se para encará-los.

Do que eles estavam falando?

Vendo a confusão em sua face, Ricardo pôs-se a explicar.

-- A Aimê foi sequestrada pela facção colombiana... A mesma que estiveram contigo...

A Calligari estreitou os olhos de forma ameaçadora.

-- Por que eles levariam sua querida neta? – Indagou desconfiada.

-- Por dıvidas que Otávio contraiu com eles, ainda mais por terem perdido bastante dinheiro há dez anos.

A pintora sabia do que ele falava... Sua fuga rendera um déficit enorme para os bandidos... Porém não imaginara que eles agiriam assim, afinal, eles não foram presos e nem punidos pelos crimes que cometeram, deveriam estar gratos por isso.

-- Que pena para sua netinha... Mas quem sabe ela não gosta de ser puta em um bordel na Turquia. – Disse cruelmente, seguindo até a porta.

Não se importava com aquelas pessoas, ainda mais com essa garota que era filha do homem que mais odiara em sua vida.

Dane-se!

-- Farei o que você quiser se a salvá-la. – Ricardo disse em desespero.

A jovem segurou a maçaneta, mas não abriu.

Sentia o aço frio em seus dedos, a mesma frieza que estava presente em seu coração.

As últimas palavras a detivera.

-- Estão blefando, decerto, pois sabem muito bem qual é o meu maior desejo. – Disse sem se voltar.

 

 

O silêncio reinou por alguns segundos até que a voz do general fora ouvida novamente.

-- Não, estou dizendo o que realmente farei se me ajudar.

Ela se voltou lentamente.

Os olhos negros pareceram maiores.

Ricardo engoliu em seco, antes de falar.

-- Eu farei o que for da sua vontade, contanto que salve a minha amada neta.

A bela mulher sentia a emoção correr mais forte por suas veias. Sentia se aproximar o momento que sempre esperara durante todos aqueles anos.

Fora vı́tima de algo terrível e mesmo com todo o prestı́gio que conseguira durante sua vida, sua dor e desprezo por tudo o que aconteceu não havia sido vingado, todos os fatos foram abafados e ao final de tudo o maldito Otávio ainda saı́ra como herói.

Diana caminhou até a poltrona, voltando a se acomodar.

Sua postura era ereta, régia, cheia de si e dona da situação.

Fez um gesto com a mão, convidando-os para se sentar diante dela.

Ricardo puxou uma cadeira para a esposa e se acomodou depois da mesma.

O olhar dos três deixava claro que só estavam no mesmo lugar devido a um interesse comum.

-- Conte-me o que se passa... – A Calligari ordenou.

O general fitou a mulher que fora sua companheira durante muitos anos e que passara ao seu lado os piores momentos que alguém poderia viver.

Devia a ela aquilo, precisava salvar a neta já que não conseguira fazer o mesmo pelo filho.

-- Minha neta foi sequestrada... – Ricardo disse em um fio de voz. – As mesmas pessoas... – Engoliu em seco. – Ela está passando tudo o que você passou...

Mais uma vez o choro compulsivo de Claudia interrompeu o discurso.

Ricardo segurou a mão dela, fitando-a.

-- Tudo vai dar certo, meu amor...

Diana desviou o olhar, fitando um ponto vago em seu horizonte.

Lembrava-se bem do que vivera, ainda tinha as cicatrizes em seu corpo dos dias que passara naquele maldito cativeiro.

-- A Aimê é apenas uma menina... Ajude-a... – Cláudia chorou novamente.

A morena se levantou demonstrando total impaciência.

Não suportava dramas!

Caminhou até a escrivaninha, dando as costas para eles, apoiou as mãos sobre o tampo.

Fitou a imagem da jovem de olhos penetrantes.

Os cabelos eram demasiadamente negros... Os olhos grandes, exibindo um azul intenso, incandescente.

O sorriso era vivo, espontâneo... Doce... A única coisa que a diferenciava dos de Otávio que costumava exibir crueldade em todos os seus gestos.

Ela tinha os traços dele...

Teve uma sensação de náuseas.

Seus dedos longos passaram sobre a foto...

Algo a irritou.

Virou-se para os dois que a observavam.

-- Você é um general, mande seus homens regatá-la, use seu poder para salvá-la... – Falou de forma rı́spida.

 

 

Diana observou a palidez que se apossou da face dele.

Durante aqueles anos ele envelhecera bastante. O bigode que sempre usara, agora exibia um tom prateado igual aos cabelos. Estava mais magro e sua postura um pouco curvada.

Gostaria de nunca ter conhecido aquelas pessoas.

-- Eu não posso... – O general falou em desespero. – Não posso correr o risco que a matem... – Limpou a lágrima que descia insistentemente. – Eles vão matá-la... Eles querem se vingar por causa do Otávio...Meus homens não poderão passar pela tribo... Você sabe disso...

Tribo?

Ela também não era bem quista por eles há muito tempo!

Mais uma vez a bela pintora caminhou até o móvel, sentando-se.

Mais uma vez o silêncio se fazia eco, até que o olhar inexpressivo se voltou para eles.

-- Por que eu? – Questionou por entre os dentes.

-- Porque você foi a única que viveu aquele inferno e conseguiu sobreviver... Você conhece aquela floresta, conhece suas armadilhas... Você é a ú nica que pode trazê-la de volta com vida.

Sim, aquilo era verdade, pois Diana conhecia bem aquele lugar cheio de perigos. Passara quase três meses fugindo da facção, dormindo em buracos, em árvores, comendo insetos para sobreviver, porém aquilo tudo não valia a pena, era uma missão suicida.

-- Eu farei o que você quiser, mas traga-a de volta...

 

 

 

 

Diana tirou toda a roupa, entrando na confortável banheira.

Inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos, sentia o aroma delicioso da espuma invadir seus sentidos.

O banheiro era todo decorado na cor branca. Grande e espaçoso, fazia parte dos aposentos principais que ela ocupava.

Aquela enorme mansão fora deixado por seu pai. Localizava-se em uma fazenda, onde ela fizera questão de continuar com a paixão que fazia parte do sangue dos Calligaris, criação de animais, principalmente de cavalos.

Todos estranhavam o fato de uma grande dama da sociedade viver isolada em um lugar como aquele, mas ela não se importava com isso. Suas obras sempre viam de inspirações daquele pedaço de paraı́so.

Ouviu passos macios e nem mesmo abriu os olhos. Apenas sentiu a mão amorosa pousar em seu ombro.

-- Menina, isso não é hora de tomar banho, qualquer dia desses vai pegar uma pneumonia.

A morena sorriu e encarou o rosto roliço de sua amada babá e tia.

Aquela mulher lhe criara desde que era um bebê e sempre lhe dedicara todo o carinho e amor.

Tocou-lhe a face, fitando os cabelos grisalhos, o olhar simpático que lhe era caracterı́stico.

-- Precisava relaxar...

-- Você costuma relaxar sobre o Cérbero... Outra coisa que ainda vai te render uma infecção. – Levantou-se, pegando o roupão e estendendo para ela. – Venha, já está na hora de ir para cama e se não conseguir dormir pode ir pintar seus quadros, eu te faço companhia.

Diana deu um suspiro de resignação. Não era fácil ir contra as ordens daquela senhora.

Levantou-se, permitindo que ela lhe ajudasse a se vestir.

-- E como foi a exposição? – Questionava enquanto seguiam para o quarto.

A jovem seguiu até a cama e viu que havia uma bandeja com leite e biscoito.

Seguiu até a mulher, abraçando-a.

-- Você é tão maravilhosa comigo, Dinda. – Apertou-a mais forte. – Eu não sei o que seria de mim sem você na minha vida.

A senhora sorriu, segurando-lhe o rosto querido.

-- Sabe que te amo como se tivesse saı́do do meu ventre...

-- Eu te amo como se assim o fosse.

Dinda, como era chamada carinhosamente, era Antônia Calligari, tia de Alexander.

Seguiram até a cama, sentando-se.

Diana levou o copo à boca.

Dinda a observava de forma atenciosa, pois depois de tudo que sua menina passou ela sabia como sua vida se tornara difı́cil. Sabia que ela não era feliz, ainda mais porque não conseguira esquecer tudo o que aconteceu.

-- Eu vou ter que me ausentar por uns dias... Preciso fazer algo.

-- O quê? – Indagou preocupada. – Passou um mês inteiro na Alemanha, se jogando naquelas boates, envolvendo-se com pessoas... – Torceu a boca. – Não quero nem falar sobre isso. Você é uma Calligari, tem sangue nobre, precisa agir como uma dama. – Levou a mão à testa. – O que fiz de errado na sua educação.

A jovem sorriu.

Sabia como a senhora condenava seus atos.

-- Não irei a esses lugares dessa vez... – Mordiscou distraidamente um biscoito.

-- E então?

-- Vou para a Amazônia...

Dinda praticamente pulou da cama.

O rosto expressando total palidez naquele momento.

-- Está louca? Perdeu o resto do juı́zo que lhe restou? – Colocou as mãos na cintura roliça. – Que diabos vai fazer naquele lugar? Foram aquelas pessoas quem a desviou do seu caminho...

A morena tomou mais um pouco do leite, depois encarou a babá com toda calma do mundo.

-- Irei salvar Aimê Villa Real e acertar umas contas antigas.

A mulher ficou boquiaberta com o que estava ouvindo.

-- Que brincadeira é essa, Diana? Você jamais se envolveria em algo tão arriscado para salvar alguém daquela família.

A pintora tocava a borda do copo, parecendo pensativa, depois voltou a fitar mulher.

-- Ricardo disse que vai me dá o que eu quiser se eu trouxer a neta dele viva...

-- Meu Deus, filha, esqueça isso... – Sentou-se, tomando as mãos delas nas suas. – Você já sofreu tanto, quase morreu, pior, parece que agora realmente você pretende concretizar seu desejo de morrer.

Diana esboçou um sorriso triste.

-- Eu preciso fazer isso, preciso que toda verdade venha à tona, necessito de que todos saibam do que se passou.

-- Mas o que isso vai mudar?

A jovem deu um suspiro alto.

-- Vai mudar a imagem que as pessoas têm de um homem que jamais foi herói, de um homem que foi aclamado por todos, quando por baixo dos panos cometia os crimes mais bárbaros que se podia imaginar... Eu limparei o sobrenome Calligari... Eu devo isso ao meu pai...Devo isso a você... – Falou emocionada.

-- Ele está morto, filha... – Com o polegar secou uma lágrima que descia do rosto bonito. – Nada pode mudar o passado.

-- Mesmo assim ainda me faz muito mal... – Mordiscou o lábio inferior. – Preciso disso para continuar minha vida...

-- Por que esse homem não manda o exército resgatar essa menina, ele tem esse poder... Por que envolveu você nessas coisas? Isso é muito arriscado... Você nem mesmo se envolve mais com isso... Não é mais uma militar... – Disse aborrecida.

-- Ele sabe que não será algo fácil e sabe também que eu sou a única chance para essa garota sair de lá com vida. A tribo não permitirá a passagem deles... Isso alertará a todos.

-- E quem disse que vão te deixar passar? Você foi proibida de pisar naquelas terras!

Ela mordiscou o lábio inferior demoradamente.

-- Diana, por favor, não vá! – Pediu chorosa.

A morena depositou um beijo em sua face.

-- Eu juro que voltarei bem e quando retornar vamos viajar para Itália como você tanto queria, vamos rever a família.

-- Diana... – Insistiu. – Você nem mesmo conhece essa menina...

-- E a mim ela não interessa! – Falou de forma rı́spida. – Vou precisar usar todo meu controle para não matá-la, eu mesma, afinal, ela é a filha daquele monstro!

Dinda fez um gesto negativo com a cabeça, temendo por essas palavras.

Onde Ricardo Villa Real estava com a cabeça ao envolver a Calligari nessa história. Será que ele não tinha ideia de todo ódio que a jovem artista carregava dentro de si?

Abraçou sua amada garota, sabendo que a ú nica coisa que podia ser feito naquele momento era rezar para que tudo saı́sse bem naquela empreitada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Três dias depois...

O pequeno avião sobrevoava baixo.

A Calligari observava pela janela o verde imperar naquelas paisagens.

Naquele vasto território havia um nú mero grande de tribos isoladas, muitos evitavam manter contato com a civilização moderna, até mesmo sendo arisco à sua presença. Infelizmente grandes madeireiras e exploradores costumavam invadir esses lugares e isso causavam inúmeras doenças.

Não era fácil penetrar em seus espaços, o mais provável é que se saia com uma flecha alojada em seu corpo.

Fitou a pequena aldeia.

Lembranças invadiram sua mente.

Respirou fundo!

O ar era mais fresco, refrescante... Transmitia paz, mesmo sendo tão selvagem.

O piloto recebeu a permissão para pouso e logo o fez.

Diana ouvia o som dos motores aos poucos serem desligados.

Pegou a mochila, parou no primeiro degrau observando toda a região.Pouca coisa mudara naqueles anos por ali.

Um pequeno paraı́so no meio do nada. O verde era preservado, os poucos animais que ali viviam eram usado para sobrevivência daquelas pessoas. Não costumavam buscar mais do que necessitava, apenas viviam com o que era necessário.

Viu algumas crianças correndo curiosas até a aeronave e em meio a elas viu um rosto conhecido.

Desceu o restante dos degraus, colocou os óculos de aviador prateado para lhe proteger os olhos do sol escaldante.

Havia uma verdadeira fileira de casinhas de madeira. Humildes choupanas.

As pessoas corriam para as pequenas portas e janelas para observarem a figura imponente que acabara de chegar.

Diana usava calça em estilo militar colada as pernas torneadas, botas confortáveis que chegavam até os joelhos, camiseta verde justa a suas curvas, suspensório, boné sobre os cabelos soltos.

Era uma mulher muito bonita e não costumava passar despercebida.

A Calligari parou quando observou o homem se aproximar dela.

Ela o conhecia há muito tempo, desde que seu pai a carregava por aquelas terras.

Piatã era o seu nome.

Ele já estava bem idoso, mas ainda exibia vivacidade em seu andar. Era considerado um lı́der naquele pequeno lugar.

-- Dia, major! – Estendeu a mão para ela. – O que a traz por aqui?

A morena esboçou um sorriso.

As pessoas naquela região que a conheciam a chamavam assim.

-- Como vai, meu amigo? – Indagou retirando os óculos. – Agradeço por ter permitido a minha chegada.

O velho ı́ndio percebeu um quê de sarcasmos naquelas palavras, porém ignorou-as.

-- Vida boa sempre quando procuramos viver em união com a natureza! Major sabe disso muito bem.

Ele fazia parte de uma tribo que vivia na floresta, mas precisou escolher ficar naquele lugar para proteger a identidade dos que não gostavam da sociedade, daqueles preferiam viver dentro da imensa mata.

Piatã era uma espécie de guardião.

As pessoas ali usavam roupas normais, mas ainda conservavam suas tradições.

-- O que a traz aqui depois de tantos anos? – Indagou desconfiado.

-- Preciso que me leve à tribo!

Piatã nada disse, apenas apontou para a pequena choupana e seguiu em passos lentos.

Diana mirou o relógio.

Meio dia!

Precisava se apressar, pois a travessia pela mata fechada era demorada, porém não podia recusar o convite do velho, seria considerado uma verdadeira ofensa.

Resignada, seguiu-o.

Enquanto caminhava, as pessoas a observavam com curiosidade. As crianças pareciam embevecidos diante da jovem, caminhando ao lado dela.

Percebeu também que alguns mais idosos a olhavam com raiva, porém aquilo não importava mais.

Chegaram até o pequeno barraco.

A porta era dividida em dois rolos. Ambas estavam abertas.

 

 

O lugar era simples. O piso de terra batida, a eletricidade era privilégio de poucos naquele lugar. Apenas quem contava com um motor poderia viver com esse luxo, os demais ainda utilizavam o candeeiro a gás.

Piatã fez um gesto para que ela sentasse.

A casa de apenas um cômodo tinha uma mesa rú stica, uma rede, um pote para água e um fogão de barro, o piso era batido.

Diana se acomodou no banco de madeira.

O velho ı́ndio lhe serviu um copo com água, depois sentou de frente para ela.

-- Hoje de manhã o Pajé mandou sua ave avisar da sua chegada.

A morena tomou o conteú do lentamente.

Outra pessoa ao ouvir aquilo se assustaria, mas ela sabia dos poderes daquele velho homem.

Fitou o lı́quido cristalino que repousava no fundo caneca.

-- O que ele disse mais?

-- Que a major deve retornar para selva de pedras, que a major não deve seguir em busca de vingança... Sua tribo não gostará de saber que veio aqui.

Diana tirou o boné.

Pacientemente regulava o fecho.

-- Mesmo que ele não queira, eu atravessarei a tribo e se ele quiser me deter vai ter que mandar os guerreiros me matarem.

Piatã estendeu as mãos segurando as da jovem nas suas.

-- Ainda tem a alma escurecida... Não deveria ter voltado aqui... Os anos não fizeram muito por você.

A jovem respirou de forma exasperada.

-- Leve-me até lá ou eu mesma irei sozinha!

-- Menina Diana sabe que não pode entrar na selva sem permissão... Sabe que será uma afronta a nossa tribo e sabe muito bem o que acontece com aqueles que desrespeitam nossas leis.

-- Não esqueça também de que para esse povo eu sou uma princesa! – Disse com arrogância.

-- Sua tribo a condenou há muito tempo...

A morena parecia pronta para retrucar agressivamente, mas acabou adotando um tom mais cordato.

-- Eu sei e pelo respeito que tenho por sua cultura vim aqui pedir que me leve à tribo, deixe que eu fale com o pajé, dê-me a chance de convencê-lo a permitir a minha passagem por sua terra.

O bom homem esboçou um sorriso.

Conhecia bem aquele ser forte que estava diante de si e tinha certeza que ela não desistira sem lutar até o último segundo.

Ela era uma guerreira... Uma princesa...

Piatã levantou.

-- Comeremos algo e depois seguiremos viagem... Porém se o pajé não permitir a sua passagem, deve retornar comigo, não deve afrontá-lo, major.

Diana nada disse, apenas permaneceu sentada, observando a agilidade do velho ı́ndio.

Aquela empreitada não tinha como objetivo salvar Aimê, na verdade, a pintora nem se importava com a garota, apenas tinha em mente o que tanto almejara durante todos aqueles anos. Finalmente todos saberiam quem era o coronel Otávio Villa Real, finalmente toda a culpa que fora jogada sobre si seria retirada.

Levantou-se, seguindo até a porta.

 

Observava com atenção as crianças brincando, correndo e aprendendo a usar o arco e flecha.

Por um momento lembrou-se de uma garotinha de cabelos de cabelos negros que corria livre por aquele lugar, uma menina que não sabia o que o futuro lhe reservava.

Piatã colocou a mão em seu ombro.

Agora ele já estava encurvado, mas antes era um pouco mais alto do que a Calligari.

-- Tem boas lembranças daqui?

-- Algumas... – Respondeu sem se voltar.

-- Mesmo que tente, mesmo que os renegue, quem a conhece encontra a princesa de uma tribo.

-- Sim, eu sinto dentro de mim a selvageria do povo que é meu. – Disse em desdém. – Todos os anos e todo dinheiro gasto com a melhor educação não me livraram desse estigma.

-- O seu povo deixou há tempos esse caminho, os Tahalunara é uma tribo de guerreiros corajosos...

-- Assassinos!

-- E você, major, é uma assassina também?

A morena não respondeu e o velho ı́ndio voltou a arrumar as coisas.


Comentários

  1. Geh, que prazer poder ter ler. Seu talento é impressionante. As tuas estórias são uma delícia de acompanhar. E essa é uma das que eu mais gosto junto com Anjo Caído. Ter pessoas talentosas como você escrevendo é um bálsamo. Obrigada por compartilhar tuas estórias.

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  2. Ahhhhhhhhhhh🤩🤩🤩🤩 chegou a vez da minha história preferida.

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