A déspota - Capítulo 9
Maria Fernanda apertava contra si a pequena Eva.
A garota dormia com a cabeça em seu ombro e a perna
enganchada em sua cintura.
A juı́za teve que se segurar para não acordá-la e
continuarem de onde tinha parado. Mas a menina devia está cansada, afinal,
foram muitas emoções para uma noite só.
Afastou-se um pouco para poder fitar aquele
rostinho lindo. Parecia um anjo dormindo. Os longos cı́lios servindo de
cortinas para aqueles lindos olhos e sedutores. Mirou a boca rosada e teve que
respirar fundo, pois o ar faltava aos seus pulmões.
Lembrou do sabor daqueles lábios macios e pior
recordou da perı́cia que eles tiveram ao tocar em seu corpo.
Aquela fora a primeira vez em toda sua vida que se
entregara a alguém. Não permitia ser tocada, sabia que aquilo era algo que a
deixaria fraca e seria fácil ser manipulada quando a cabeça estava cheia de
desejo.
Lembrou-se da própria mãe. Coitada! Fora escrava
de um amor destrutivo, manipulada pelo corpo e pelo coração.
Lembrava-se de como era terrível vê-la naquele lugar frio e não poder dizer
que ela era sua mãe, nem mesmo era defendida por ela dos inúmeros abusos que
lhe era infringido.
Todas as vezes que fugira deixara-se ser levada de
volta, pois lembrava que a mãe estava no orfanato e precisava de si, até a
última vez que voltara e descobrira que sua criadora tinha tido uma overdose e
nem mesmo podera ir a um hospital decente, morrendo no corredor de um posto,
numa maca fétida.
A cigana se mexeu, grudando-se mais a sua juı́za.
Aquela distração lhe fez perder o foco das chagas
que estava revivendo.
O melhor seria aproveitar, afinal, seria apenas
aquela noite, só naquele momento poderia se dar àquele luxo, merecia por toda a
raiva que passara por culpa dela.
-- Vem cá, minha linda italianinha. – A trouxe
para cima de si.
Beatrice resmungou algo e se apossou do cantinho
que lhe era oferecido.
-- Você é uma verdadeira tentação. – Sussurrou
em seu ouvido, abraçando-a mais forte. – O que vou fazer contigo, hein?
Aspirou aquele cheiro gostoso que se depreendia
daquela linda fêmea.
Fechou os olhos e tentou encontrar o sono.
Inconscientemente, Eva virou-se e aconchegou em seu
peito Maria Fernanda. Mesmo adormecida, a Belluti conseguia sentir as agonias
que dominavam o coração da sua déspota.
O dia amanheceu cinzento. Algumas nuvens pareciam
dispostas a não deixarem o sol aparecer. Apesar de ser quase dez da manhã, um
vento frio penetrava por entre a janela do quarto.
Beatrice sentiu um arrepio na espinha. Puxou o
cobertor e buscou o calor do corpo que lhe dera tanto prazer na noite passada,
mas não havia ninguém ali, foi isso que constatou ao abrir preguiçosamente os
olhos e procurar pela jovem.
-- Perdeu alguma coisa, cigana?
A filha do milionário virou assustada ao ouvir
aquela voz firme e com uma pitada de humor negro.
Observou que a juı́za já se encontrava
impecavelmente vestida com uma blusa social branca de mangas longas, uma calça
social preta, ajustada ao corpo, e um colete preto.
Os óculos de grau elegante estavam bem ajeitados
em seu nariz fino e arrebitado, os cabelos estavam presos num rabo de cavalo,
com a franja caindo sobre a testa de forma perfeita.
Não havia vestígios do tentador ser que lhe tomara
na noite anterior.
Embaraçada, pegou o lençol e cobriu sua nudez.
-- Por que está corada? – Indagou arqueando a
sobrancelha de forma ousada.
Eva percebeu que a mulher ali parada já tinha
recuperado a expressão sarcástica que havia dado uma trégua na noite
passada. Sentia-se decepcionada ao notar que os olhos mais lindos que já tinha
visto só exibiam frieza e não mais a paixão de horas atrás.
-- Bom dia, juı́za!
Maria Fernanda a olhou languidamente. Percorrendo-a
de baixo para cima, demorando-se na altura dos seios, depois subiu pela boca e
parou nos olhos escuros. Sorriu ao notar o desafio presentes naquele ébano.
-- Como você dormiu? – Provocou!
-- Tão bem quanto você, senhora tirana! – Se
aconchegou mais nas cobertas. – Que horas você vai me mandar para a minha
casa?
-- Eu acho que você ainda está sonhando, mocinha!
Pois, você não vai a lugar algum, pelo menos nos próximos meses.
-- Você disse que me deixaria ir!
-- Quando?
-- Ontem! – Quase gritou. – Você falou que...
-- Bem, ontem eu bebi muito e nem sei como fui
parar na cama e ainda por cima nua e contigo agarrada a mim. – Disse com pouco
caso. – Diga-me uma coisa: Deu tão gostoso para mim apenas para ir embora?
A filha de Andrello fechou as mãos ao lado do
corpo. A fúria estava expressa em sua face.
-- Maledetta donna! – Falou semicerrando os olhos.
Fernanda
gargalhou.
-- Também te amo, amore mio! – Soprou um beijo
para ela.
Beatrice não lembrou que estava nua e levantou, praticamente
voando para a filha de Pedro.
A déspota tentou desviar dos socos que a outra
deva às cegas, porém acabou sendo arranhada no rosto. Descontrolada a
empurrou forte sobre a cama.
-- Vou dar ordens para que você não saia desse
lugar! – Gritou passando a mão na face e percebendo que havia sangue lá. –
Mas não se preocupe, sua estúpida, não vou ficar aqui e por isso não
precisará aguentar a minha companhia.
-- Vai all'inferno!
-- Eu já estou no inferno! – Falou saindo do
quarto.
Eva ouviu o clique da porta ser fechada,
trancafiando-a mais uma vez naquele lugar.
Sentiu as primeiras lágrimas rolarem, mas desse
vez não era o fato de ficar naquele terrível lugar e ser vı́tima daquela
armação, o que estava doendo era pensar como fora ingênua e chegara a
imaginar que depois daquela noite tudo seria diferente, porém constatara
dolorosamente que fora apenas usada e caíra como uma idiota naquele joguinho
sádico.
Levantou, limpou os olhos e seguiu para o banheiro.
Não permitiria que aquela maldita mulher
interferisse em sua vida. Ficaria o tempo necessário naquele lugar, porém
quando chegasse a hora iria embora e daria uma boa lição a juı́za. Mostraria
para ela que Eva Beatrice Belluti não era apenas uma menininha, era alguém
que ela jamais iria esquecer.
Maria Fernanda deu ordens precisas ao guarda e
seguiu para o carro. Estava decidida a manter-se afastada daquela linda cigana.
Quase fraquejou diante dela, por muito pouco não perdera o controle do
próprio destino, se perdera naqueles olhos escuros, se perdera no sabor
daquela boca, no gosto daquele corpo, naquele doce sotaque italiano, mas
conseguira acordar há tempo de não cometer essa loucura.
Ligou o rádio do carro e ficou lembrando da noite
maravilhosa que teve nos braços da sua refém.
Lembrou-se da primeira vez que a viu e das palavras
ditas por ela.
“Olá, minha bela dama! Deixe-me ler sua mão,
sinto que hoje você encontrará o amor da sua vida! ”
Amor?
Uma maldição fora jogada em si.
-- Maldita cigana! – Bateu forte no banco do
carona.
Acelerou ainda mais, a partir daquele dia ocuparia
o apartamento que lhe fora dado na cidade, assim poderia cumprir aquela tarefa
tão difı́cil que tinha em mãos. Não podia negar que na chegara a cogitar
não continuar participando daquele plano, porém sabia que aquela era a única
chance que teria para poder realizar o seu maior desejo.
Parou o carro e lá estava Catrina a esperando.
-- Eu pensei que não viria mais. – A loira falou
entrando no automóvel.
-- Estou indo para a cidade e você vai continuar
cuidando da casa da fazenda. – Falou sem olhá-la.
-- Mas e como eu vou te ver? – A jovem depositou a
mão em sua coxa, ousada.
-- Eu peço a alguém para te levar ao meu encontro.
– Tocou nos seios da jovem. – Agora, se eu souber que você andou chegando
perto da cigana, cumprirei todas as ameaças que já te fiz.
-- Não tenho motivos para querer a Eva, se tenho
você.
Aquela fora a forma perfeita para manter a loira
longe da italiana. Além de que não podia negar que a Catrina era muito
gostosa, uma boa válvula de escape.
Belluti estava em sua empresa quando a secretária
anunciou que Lutho estava lá e desejava vê-lo.
Sabia que não tinha convencido o rapaz, porém
não imaginava que ela viria ao país para resolver o assunto. Mandou a
secretária deixá-lo entrar.
-- Buongiorno, ragazzo! – Cumprimentou-o com um
abraço.
-- Belluti, onde está a Eva? – O jovem perguntou
sem rodeios.
Andrello deu a volta e sentou na sua cadeira,
fazendo um gesto com a mão para que o outro o imitasse. Teria problemas em
convencer o garoto, via pela expressão que ele não parecia nada feliz em
está ali.
-- Buono, já te disse que ela decidiu viajar. –
Afrouxou a gravata. – Você conhece muito bem sua noiva, cismou com esse
negócio de ser cigana e resolveu viver um pouco dessa
-- Mas isso é um absurdo! – O rapaz bateu forte na
mesa. – Ela deveria ter falado comigo antes, não sou um marionete que sua
filha pode usar como bem quiser.
-- Se ela faz isso comigo que sou seu pai, fazer
contigo é fichinha.
-- Mas sou noivo dela.
-- Lembrando que é o terceiro!
Lutho levantou furioso.
-- Eu não serei feito de besta! – Apontou o dedo
para o outro e saiu.
O italiano soltou a respiração que estava
segurando.
A porta abriu e lá estava Pedro.
-- O que houve com o seu genro? Ele parecia estar
com o demônio no couro.
Belluti indicou a cadeira para o amigo sentar.
-- Quase! Está louco porque acha que Beatrice
está sendo cigana por alguma parte escondida desse mundo.
-- Mas você vai o deixar pensar isso? Assim o
casamento vai acabar não acontecendo.
-- Grandes coisas! – Falou dando de ombros. – Até
parece que esse enlace vai acontecer.
-- Mas eles pareciam firmes. Quer dizer, pelo menos
foi o que mais durou.
-- Se eu colocasse fé nesse relacionamento, não
teria pedido a sua filha para trancafiar a minha naquele fim de mundo.
-- E eu ainda continuo achando que isso é um erro.
-- Veja pelo lado bom, em menos de oito meses tudo
isso acabará.
-- E você já parou para pensar em como a Maria
Fernanda e Beatrice vão estar depois de todo esse tempo? – Indagou preocupado.
-- Tenho certeza que estarão melhores de que
quando entraram.
Os dias passavam lentamente...
Eva tinha decidido poupar sua energia para usar
quando tudo aquilo acabasse. De certa forma, se acostumara com sua posição de
prisioneira. Claro, que agora contava com mais regalias. A grande casa da fazenda estava sendo
reformada. Ela adorara quando Catrina lhe pedira ajuda para a decoração,
alegando não entender daquela tarefa que lhe tinha sido proposta para ser uma
distração.
De inicio, pensara em recusar, mas acabara se
entusiasmando demais e agora percebia como aquele local estava parecido
consigo.
Lembrou da juı́za.
Há semanas não a via. Parece que tinha
desaparecido do mapa. Ninguém falava em seu nome, apenas agiam como se ela
não existisse.
Sua guarda era feita por dois seguranças. Mas ela
suspeitava que havia mais alguém por ali, pois sabia que Maria Fernanda não
confiaria em si. Observou Catrina preparando o almoço.
Elas não falaram sobre o beijo que ocorreu entre
elas, nem mesmo tentara mais alguma coisa. Melhor! Sabia que não conseguiria
reagir ao toque dela como reagia ao da déspota.
-- O que você tem? – A loira indagou sentando ao
seu lado.
Sabia que a juı́za não queria que houvesse
contatos entre ela, porém sentia um enorme carinho por aquela menina de olhos
travessos.
-- Estou apenas cansada de está aqui. – Pegou uma
maçã do cesto e mordeu. – Nunca tinha ficado tanto tempo presa em um único
lugar.
-- Hun! O tempo está passando muito rápido,
dentro de poucos meses você voltará a ser livre. Eva deu de ombros e
continuou comendo.
-- E onde está a dona do mundo?
A loira ficou confusa, então se lembrou de quem
ela falava.
Aquele substantivo caia como uma luva na juı́za.
Ela era uma mulher muito dominadora. Estava cada vez mais envolvida nas teias
daquela sedução que parecia não ter limites, porém era sempre tão
frustrante a outra não permitir que lhe tocasse que chegava a dar agonia.
Vez e outra era requisitada e corria feliz para os
braços da déspota. Sabia que era apenas um brinquedo nas mãos da poderosa,
porém aproveitava bem cada momento para tentar matar o desejo que sentia e
parecia aumentar mais e mais cada dia.
-- Está na cidade! – Levantou alterada.
Eva a fitou.
Inúmeras vezes, perguntara a jovem o que tinha
acontecido naquela noite que Maria Fernanda foi atrás dela. Tinha a impressão
que algo ocorrera entre ambas. Mas o quê?
-- Achei estranho a excelentı́ssima deixar você
voltar aqui depois de ter visto o beijo. – Falou bem perto do ouvido dela. –
Imaginei que ela te mataria, afinal, saiu daqui louca.
A moça estava limpando um peixe e preferiu ignorar
a prisioneira.
-- Quando ela chegou, eu perguntei o que ela tinha
feito contigo e sabe o que ela respondeu?
-- O quê? – Perguntou sem se voltar.
-- Que tinha te comido!
Catrina deu um grito de dor, pois a faca passara
direto e cortara seu dedo.
-- Olha o que você fez, menina! – Reclamou pegando
um lenço. – Fica ai me distraindo e é nisso que acaba.
-- Deixe-me ajudar-te. – Falou enrolando o dedo da
outra e pressionando para parar o sangue. – Vai ficar bom, não se preocupe. –
Piscou.
-- Não me diga que você usou seus dons de
clarividente para adivinhar isso? – Debochou.
-- Eu tenho outros dons, minha querida! – Sorriu.
Catrina balançou a cabeça.
A Belluti caminhou pela cozinha e observava com
atenção o dia. Ansiou por deixar aquela prisão.
Tinha alguns livros em seu quarto, fora enviado e
isso lhe distraia muito, mesmo assim havia horas que perdia a paciência por
estar há tanto tempo longe de casa.
O que o pai teria inventado para o noivo e para os
avós?
Em breve tudo aquilo acabaria e ela retornaria.
-- Nossa! Como o sol está bonito. – Falou olhando
pela janela. – Saudades de ficar na piscina com meus amigos jogando conversa
fora e bebendo.
A loira sorriu.
-- Que vida difı́cil, hein! – Se aproximou. – Aqui
perto tem um rio, é perfeito para banhar. A água vem de uma fonte.
Eva se virou para ela.
-- Nossa! Que maravilha! Eu adoraria banhar-me
nele, mas como o farei se nem ao menos posso por um pé fora daqui. – Disse
tristemente.
Catrina levou o dedo à boca e ficou a morder a
unha, estava pensativa, ponderando sobre qual seria o melhor a se fazer.
Maria Fernanda estava cada vez mais irascível,
chegara a pensar que sair de perto de Eva seria suficiente para acalmar o fogo
que ardia dentro de si, porém cada dia que passava aquilo estava ficando pior.
A vontade que tinha era de voltar à fazenda e tomá-la para si novamente.
Descontrolada, derrubou a pilha de processos que se
encontrava sobre sua mesa. Tirou os óculos, levantou, passando as mãos nos
cabelos soltos.
Começou a tamborilar os dedos sobre a mesa. Estava
se sentindo asfixiada naquele lugar, precisava sair dali. Decidida, pegou as
chaves do carro e seguiu em disparada do prédio.
Catrina sabia que não devia ter cedido ao pedido
da ciganinha, mas vendo-a brincar na água feito uma criança era gratificante e
o que poderia acontecer, o guarda estava ali por perto vigiando-as, bastava que
a juı́za não ficasse sabendo. Tinha certeza que ela não concordaria com
aquilo.
Então, seus olhos pensaram ver uma miragem, porém
era apenas a tirana montada em seu cavalo preto, exibindo uma pose de rainha e
uma expressão furiosa.
Tadinha da Catrina rsrsrs
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