Anjo caído -- Capítulo 7

                  Eduarda permanecia estática.
               Levou a mão aos lábios, sentia o sabor do sangue e lá estava o lı́quido vermelho em seus dedos. Fora ferida, machucada e a doutora Angel agira como a selvagem que sempre se comportara consigo.
            Mais uma vez ela demonstrara sua frieza e superioridade para castigá-la quando estava fragilizada com o que havia se passado.
               Seus pensamentos estavam tumultuados, apreensivos, desejando apenas se afastar daquele lugar e manter a maior distância possível da Berlusconi.
                 O som do celular interrompeu seus pensamentos. Viu-o sobre a mesinha.
                 Lentamente seguiu até lá para atender.
            -- O que houve? – A voz de Flávia se mostrava impaciente. – Liguei durante todo o dia. Fiquei desesperada pensando que algo de ruim tinha se passado contigo.
                Eduarda respirou fundo.
                -- Eu cai... – Mordeu o lábio inferior. – Machuquei meu pé.
           -- Mas como isso se passou? Foi sério? Mandarei José agora mesmo te buscar para ir ao médico. – Dizia preocupada.
              Duda não relutou, desejava partir. Sentiu uma lágrima rolar.
              -- Espere um pouco e arrume suas coisas. Você ficará alguns dias na cidade, pois sua prova é daqui a dois dias.
              -- Certo.
              -- Não desligue. Espere alguns minutos que vou chamar o José no outro telefone.
              A garota não respondeu, apenas continuou no mesmo lugar com o aparelho na orelha.
          Sentia-se aliviada por ter que sair daquele lugar. Por se manter longe daquela mulher. Não desejava retornar mais, queria ficar longe e esquecer que tivera aqueles dias terríveis com aquele ser intratável.
           -- Pronto, Duda, ele na verdade já estava a caminho, tinha falado sobre o fato de não conseguir manter contato contigo e ele decidiu seguir sem minhas ordens.
              -- Ok.
                  Flávia percebia que havia algo mais incomodando, pois Eduarda não era de ficar tão calada e arredia.
              -- O que se passou, Duda? Onde está a Angelina?
              -- Não sei, deve estar em sua caverna. – Disse irritada.
               -- Vocês brigaram?
             -- Eu briguei? Eu briguei? – Repetia incrédula. – Desde que eu cheguei aqui faço o possível para ficar bem com essa mulher, mas sabe o que recebo? Ela parece um demônio. Um monstro... Nunca vi nada parecido.
             -- Não fale assim! – Repreendeu-a. – Não sabe o que se passou com ela. – Disse em um fio de voz.
             -- E não me importa saber o que se passou, só desejo me manter bem distante dela. – Explodiu em prantos. A loira ouvia os soluços e se sentia cada vez mais impotente por não poder fazer nada.
             -- Acalme-se! Nada acontecerá contigo, como já disse, Angelina só te atacará quando você for até ela, não sendo assim, ela permanecerá em seu canto.
               -- Não é apenas isso...
               O sinal da rede caiu, pois a ligação fora interrompida.
               Ficou observando o aparelho e pensando como em tão pouco tempo sua vida mudara tanto.


             Não havia mais nada para ser destruı́do por Angelina. Não havia móveis, adornos ou vidros, então ela apenas permanecia sentada em meio a total escuridão.
           Talvez não houvesse mais o que se partir, pois já estava ela em estilhaços há muito tempo. Observou as mãos e viu cada uma das marcas que carregava consigo desde aquele fatı́dico dia.
             Cada corte, cada partı́cula que penetrara em sua pele... Aquelas dores nunca se comparariam a agonia de não ter conseguido salvar a própria mãe.
            Por que tinha sido jogada para fora daquele maldito veı́culo? Por que não ficara lá para morrer, assim, teria poupado muitos de sua presença insignificante.
               Ouviu o som de carro, seguiu até a janela e viu José lá fora. Bem, um problema a menos para lidar.
           Ficou parada lá e não demorou muito para que a visse aparecer. Mantinha-se escondida, esperando o momento que o olhar da jovem se voltaria para si, como sempre fazia, porém daquela vez os lindos olhos verdes não se dirigiram para ela.
            Observou-a entrar no automóvel, indo embora. Seus dedos trêmulos seguravam a cortina pesada.
            Desejava que ela não voltasse mais, pois a sentia mais ameaçadoramente do que qualquer outra coisa. Continuou a observar o carro se distanciando.
               Caminhou até a enorme cama, deitando-se. Cobriu o rosto com as mãos.
               Sentindo novamente o vazio de antes, mas que agora parecia ainda maior.
               Seus dias estavam fardados a terminarem mergulhadas naquele mundo sombrio de dor.


              Anos antes...
              O quarto branco trazia angustia.
             Em todos aqueles anos ao lado da amiga, Flávia jamais imaginara ter que vê-la ali como sua paciente. Os inúmeros aparelhos monitoravam sua vida que parecia querer se extinguir a qualquer momento.
              Fitou as mãos enfaixadas. A minuciosa cirurgia que foram submetidas não foi suficiente para reconstruı́-la totalmente, muitas outras deveriam ser feitas.
          Fitou os cortes no rosto bonito. Os vidros penetraram a pele delicada e tiveram que ser retirados em uma demorada operação. O lábio superior fora cortado.
              A loira sentou.
           Duas  semanas  se  passaram  daquele  terrível  acidente  e  ainda  não  conseguia  se  emocionar  com  tudo  o  que  se passou.
           Ouviu-a chamar pela mãe infinitas vezes e fora preciso sedá-la, pois a maldita mente de Angelina não lhe dera o conforto de pelo menos esquecer o que se passara. Ela tinha conhecimento de todos os fatos.
              Viu quando os olhos negros se abriram, mas daquela vez não houve gritos e nem a tentativa de se levantar da cama.
            Observou a lágrima escorrer por sua face. Desejou abraçá-la e tomar para si toda aquela agonia, mas como se fazia algo assim?
                Retirou a máscara.
            -- Angel, eu estarei sempre contigo, independente de qualquer coisa, dos anos, de todas as suas tragédias você poderá sempre contar comigo.
           A morena nada disse, voltou a cabeça para o outro lado, perdida em suas lembranças dolorosas.
           Todo o acidente fora escondido da imprensa. Antônio Berlusconi não quisera que seu prestigioso nome se envolvesse em um escândalo. Para todos os conhecidos, a talentosa doutora Angel ainda estava na Alemanha e sua adorada  Ângela se envolvera em um acidente que ceifara sua vida.


                  Dias atuais...
             José esperava pacientemente na recepção do hospital, enquanto Eduarda era submetida a vários exames. Lia o jornal distraidamente quando o toque do celular lhe despertou.
                -- Sim, senhorita Flávia.
                -- Ela já foi atendida?
                -- Ela continua na sala, mas acho que não demorará muito para sair.
                O motorista conseguia perceber a preocupação na voz da patroa, ouviu-a respirar fundo.
                -- O que a preocupa? Não acho que seja grave o que a garota tem.
             -- Não é isso, eu também acho que tudo está bem. Mesmo depois de tudo o que se passou com a Angel, eu sei que ela soube como lidar com o ocorrido.
                -- E então?
                -- A Patrı́cia contratou um detetive, ele esteve por aı́ esses dias, fez perguntas, está em busca da Angelina.
              -- Deus, essa mulher não se cansa de causar desgraça!?
            -- Ela está disposta a encontrar a esposa e o meu medo é que ela encontre. Eu não sei o que esperar de um encontro desses, porém farei tudo o que estiver ao meu alcance para não permitir que isso ocorra, pelo menos não enquanto eu estiver presa aqui.
            -- Então o que devemos fazer?
            -- Bem, a Eduarda é uma cabeça de vento e não desejo que ela reencontre o namorado, na verdade, não quero que ela veja nenhum daqueles marginais, pois arrumará problemas e o nome dos Berlusconis será ligado ao escândalo. Faça o seguinte, leve-a para o meu apartamento e fique lá com ela. Assim que as provas terminarem, leve-a novamente para a Angel.
            -- Tem certeza? – Indagou preocupado. – Olhe, eu não sei o que se passou, mas a menina Duda parecia muito triste, sei lá, achei-a sem aquele brilho que já é próprio dela. Passou toda a viagem calada.
            -- Deve ser pela queda. Não sei, porém não arriscarei que a Patrı́cia chegue até a minha amiga. 
                O motorista não concordava, porém teria que acatar a ordem que recebia.
           -- Eu sei que estou sendo cruel com a Fercodini, mas é preciso, faça algo, compre alguma coisa para que ela não se sinta tão mal e volte a tagarelar.
               -- Certo...
             -- Agora preciso ir. Tenho uma reunião com um famoso cirurgião. Beijos e boa noite.
              José ouviu o som que denunciava o encerramento da chamada.
            Entendia a preocupação de Flávia, mas não concordava que fosse aquela jovem que nada tinha a ver com a história ser sacrificada. Certo que ela não era nenhuma santa, ainda mais pelas coisas que se envolvera nos ú ltimos tempos, porém sabia que ela era uma pessoa boa e que não deveria ser nada agradável conviver com a doutora Angel.
            Seus pensamentos foram interrompidos ao ver a menina se aproximar. Usava uma bota no pé e estava com muletas para não se desequilibrar.
             -- E então? – O motorista indagou.
            -- Estou bem. Isso é só para aumentar meu charme. – Piscou. – Agora sabe o que desejo? Um super hambúrguer com batata fritas e um copão de refrigerante... – Passou a lı́ngua pelos lábios. – E pizza... Preciso de uma pizza enorme.
             José era muito sério, mas não conseguiu conter o riso diante daquelas loucuras.
             -- O médico passou remédio?
             A garota retirou a receita do bolso.
             -- Aqui está.
            -- Ótimo! Acho que isso é mais importante do que qualquer outra coisa agora. – Repreendeu-a. – Mas a levarei para comer besteiras. – Completou ao ver a expressão de decepção que estampou a face bonita.
             Duda apoiou as axilas nas muletas e bateu palmas feliz.


              Os dias passavam tranquilos.
      Inicialmente, Eduarda protestara diante da proibição de que ela retornasse ao próprio apartamento, mas acabara cedendo diante das ameaças que Flávia fizera.
         Naquela noite, ao chegar a enorme cobertura ficara intrigada com as inúmeras fotos que encontrara da doutora Angel, afinal, de quem era aquele lugar?
             Observou em uma das imagens que a morena era muito jovem, deveria ter uns quinze anos, mas o traços não mudaram muito, apenas ficaram mais bonitos e sexy.
             Depois de um banho demorado, seguiu para um confortável quarto, mas não conseguira dormir imediatamente.
              Inacreditavelmente, sentiu falta da mansão assombrada, da ala norte cheia de peculiaridades e até da escuridão das outras partes da casa.
              Fechou os olhos e mesmo que odiasse admitir, sentiu falta daquela cruel mulher que parecia não ter nenhum tipo de sentimento.
               Mordiscou o lábio inferior.
             Não deveria permitir tais sensações pela doutora Angel. Na verdade nem sabia o que estava sentindo, além de uma enorme raiva por aquela selvagem que quase lhe arrancou os lábios fora.
               -- Doutora Frankestain!


              A mansão de três andares parecia ainda mais abandonada naqueles dias.
             Angelina passara os dias rodando pela enorme construção. Havia muito para ser visto, muitas coisas guardadas em meio a poeira, mas havia algo que se recordou de que havia escondido por ali.
            Abriu uma das enormes caixas e nem mesmo temeu que algum animal venenoso lhe atacasse. Ao pegar em algo sólido, lá estava ela.
            Era uma estátua de Galateia sendo esculpida por seu Pigmaleão. Era toda feita em bronze. Seu avô era apaixonado por mitologia, mas seu mito preferido era aquele.
          Seguiu pela enorme escada tendo apenas uma vela iluminando seus passos. Retornou ao escritório, seguindo até a janela.
          Há três dias ficava ali, olhando para o vazio da enorme estrada. Ninguém passava por lá, afinal, aquele caminho não dava para lugar nenhum.
            Irritada, jogou o molde mitológico contra a parede. Retirou as luvas. Os dedos estavam dormentes.
              Sentou-se na cadeira, inclinando a cabeça para trás, fechou os olhos. Nos últimos dias, pouco dormira. Sua cabeça doía pelo já escasso descanso.




               -- Não voltarei para lá!
               Eduarda tinha acabado de retornar da faculdade e descobriu José pronto para lavá-la de volta para Angelina.
            -- Deixe-me ficar aqui ou voltar para o meu apartamento. Juro que me comportarei, não irei me envolver em mais problemas.
           O motorista gostaria de aceitar o que ela falava, mas suas ordens foram claras. Cinco dias tinham se passado.
             De repente um cachorrinho todo roliço adentrou a sala correndo. Era um filhote de pug. Era tão gordo que em determinado momento acabou caindo e rolando pelo chão.
              José observou os olhos da Fercodini brilhar. Viu-a se aproximar, pegando o animalzinho nos braços. Ele era tão miúdo que cabia na palma de sua mão. Arisco, começou a latir para se livrar das amarras.
              -- Oh Deus! Que coisa mais linda! – Fitou o motorista. – De quem é? É um bebê!
              -- É seu! Trouxe para ti.
             -- Eu adoro animais! Sempre quis ter um, mas como morava no internato nunca pude e depois no apartamento, não dava para ter.
              -- Bem, agora você vai poder cuidar e ter uma companhia em seus dias solitários.
           Ela balançou a cabeça, mas não protestou, pois naquele momento sua atenção estava voltada para aquele pequeno ser de rostinho pretinho.
            -- Temos que passar em um petshop. Temos que comprar algumas coisas. – Levantou-o, beijando a barriguinha proeminente. – E' um machinho. – Beijou novamente. – Preciso pensar em um nome para esse bebê gostoso.
              -- Está certo! Vamos indo e no caminho passamos onde você quiser. – Seguiu até ela pegando o bicho. – Pegue as muletas.
               Eduarda não gostou de ter que soltar o novo amigo, mas foi preciso para poder se locomover melhor.


            Angelina descia as escadas até o escuro hall. Nem sabia o motivo da fazer aquilo, mas ultimamente estava tão inquieta que não parava em lugar nenhum.
                 Segurou no corrimão, então viu a porta da frente se abrir.
                 Permaneceu onde estava. Cobriu os olhos com o braço quando a luz iluminou a entrada.
              Viu José entrar com algumas sacolas passando direto para ala norte sem vê-la. Então infinitos segundos se passaram e lá estava a figura que ela buscara inconscientemente por todos aqueles longos dias.
                Ela estava usando muletas, devido à proteção que usava no pé.
             Usava camiseta e short jeans, mas o que chamava atenção era a espécie de canguru que trazia suspenso em seus ombros e lá descansava um filhote de cachorro. Chegou a pensar que se tratasse de um bichinho de pelúcia, mas a pequena criatura começou a latir ao vê-la lá, denunciando-a.
               Recuou!
               Duda sentiu o coração falhar uma batida e teve uma incômoda sensação no estômago.
              Encararam-se por alguns segundos, talvez admirando-se ou até matando a saudade daqueles dias que passaram separadas, porém a médica pareceu recuperar o mau humor costumeiro.
               -- Quem lhe deu permissão para trazer esse animal para a minha casa? – Indagou irritada.
              Eduarda a observava descer lentamente as escadas, pensou em responder, mas o motorista já chegava e se antecipava.
              -- Ele não fará bagunça, senhora. – Falava temeroso. – A dona Flávia deu permissão para que a menina trouxesse o bichinho. – Mentiu, pois a loira nem mesmo sabia daquela história.
                 A médica continuou caminhando até chegar ao térreo.
             Estreitou os olhos, fitando o motorista, em seguida dirigindo a fúria para a jovem que já tentava acalmar a euforia do pug que parecia também não ter gostado da anfitriã.
               -- Essa casa é minha e nem a Flávia e nem ninguém mandam aqui a não ser eu. 
                Os latidos finos pareciam ficar ainda mais altos.
                -- Faça essa criatura infernal calar a boca ou eu o jogarei na masmorra. – Ameaçou.
             José rapidamente seguiu até Duda, pegou o filhote e seguiu rapidamente para ala norte, deixando as duas mulheres sozinhas.
                  Eduarda respirou fundo.
             -- Tem alguém que a senhora não odeie nesse mundo? – A Fercodini perguntou furiosa. – Pois saiba que o Pigmaleão vai ficar aqui e nem todos os seus gritos irão expulsá-lo.
                Angelina pareceu sem ação, mas rapidamente recuperou a compostura.
              -- Mantenha o longe de mim, pois se o encontrar em meu caminho, o esmago. – Disse por entre os dentes.
                  Os olhos verdes pareciam faiscarem de raiva.
                 -- Faça-o e eu farei pior com a senhora, doutora.
            As duas pareciam se medir. Desafiando-se, travando uma batalha silenciosa. Eduarda foi a primeira a se afastar,seguindo para sua parte naquela casa.
                O motorista retornava.
             -- Ligue para a sua patroa e dê-me o telefone, exijo falar com aquela irresponsável. – Ordenou aos gritos.
             José viu o rosto transfigurado pela raiva e nem ousou hesitar. Fez o que foi mandado, em seguida passou o aparelho para a morena.
                 -- Algum problema, José? – A voz de Flávia parecia impaciente. – Estou em uma reunião.
                 -- Dane-se a sua maldita reunião!
               A loira pediu licença, pois o rugido que lhe fora dado poderia ser facilmente ouvido por todos.
                 -- O que houve, Angel?
                 -- Não me chame assim, sua estúpida!
                 A Tavares relanceou os olhos, respirando fundo para não perder a calma.
                 -- Certo, senhora Berlusconi, o que se passa? Quase me deixa surda.
                -- Não basta ter mandado essa pirralha de volta para a minha casa, ainda ousa mandar junto com ela um maldito cachorro. O que deseja com isso?
              Flávia não sabia do que ela falava, porém tinha certeza que aquilo só podia ser invenção de José. Jamais imaginara que ele arrumaria um cachorro, logo um cachorro.
            Era estranho, mas a Angelina tinha verdadeiro pavor desses animais. Lembrava-se de que achava engraçado que a maioria das crianças sempre desejara um, menos ela, tinha verdadeira aversão, independente de qual raça e tamanho.
               Recordava-se que a Ângela justificara esse medo, em certa ocasião contara que quando a única herdeira dos Berlusconis contava com apenas três anos fora atacada por um pitbull e mesmo com o passar do tempo nunca superara esse trauma.
              -- Tenho certeza que ele é inofensivo. – Disse por fim. – Prometo que ele não irá chegar perto de ti. 
                 Angelina não respondeu, entregando o aparelho ao motorista, deixou a sala pisando duro.
              -- Sou eu, senhorita. – O idoso parecia temeroso. – É apenas um pug. Ele é pequenininho e não apresenta nenhum risco. – Justificava diante das broncas. – Bem, pelo menos consegui convencer a menina Duda a votar. Certo. Até mais.
              José respirou fundo, seguindo para fora da mansão. Não imaginou que algo tão simples causaria tantos problemas.


                 A ala norte continuava impecavelmente limpa.
               Duda deitou na cama, trazendo consigo o pequeno cãozinho. José fora maravilhoso e ajeitara todas as coisas em seu lugar. A garota pegou a mamadeira colocando na boca do filhote.
             -- Não precisa ficar assustado. A fera não costumar vir aqui. – Acariciou a cabecinha do animal. – Nossa, sua barriguinha parece que vai estourar.
                 Deitou-o com as perninhas para cima.
                 -- Pigmaleão. – Beijou o buchinho. – Gostou do seu nome?
                 O pequeno pug apenas mamava, fitando a sua dona com certa adoração.
                -- Você não gostou da doutora Angel? Pois é, ela tem aquela cara de bruxa má. Affz, que ser humano no mundo pode não gostar de um filhote lindo como você.
                Ela se levantou, seguindo até o móvel. Pegou a pequena sacola, retirando algumas roupinhas para seu bicho.
                -- Você vai ficar bem fofo vestido com essa. – Mostrou o casaco rosa de crochê. – Nossa, como você come!! Vai ficar ainda mais gordinho.
                   Segurou a mamadeira.
                  Só naquele momento chegou a pensar na sensação de ver aquela linda mulher descendo as escadas.
                 Nem  aqueles  dias  distantes  foram  suficientes  para  aplacar  aquele  humor  terrível.  O  melhor  de  tudo  era  manter distância e permanecer bem afastada para que as afrontas não continuassem.



                Os dias na mansão passavam tranquilos. Não houve encontros entre as duas mulheres.
              Angelina não estava bem naqueles dias, ainda mais porque se aproximava o aniversário que ocorrera o fatı́dico acidente.
              Ela se mantinha ainda mais trancada, não só dentro das paredes do próprio quarto, mas dentro de si, alheia a tudo que se passava ao seu redor.


                  Naquele dia Flávia estava inquieta.
                  Sabia que a melhor amiga sofreria ainda mais naquela data.
                Faria qualquer coisa para retirar aquela dor que a feria tanto, para fazê-la esquecer tudo o que se passou, porém nem sua presença era aceita. Em todos aqueles anos fora sempre rechaçada.
               A poderosa doutora Angel não permitia que ninguém visse angustia e seu desespero, preferia reviver suas chagas sozinhas do que ter alguém para confortá-la.
                   Naquele momento a loira chorou, chorou por tudo o que desejava fazer e não podia.




                Os raios e trovões cortavam os céus naquela noite. O universo parecia em fúria. As gotas de chuvas caiam implacável sobre a construção antiga.
           Pigmaleão estava amedrontado com o som alto. Duda tentava confortá-lo, mas em determinado momento o bichinho saiu correndo e como a porta estava aberta, seguiu pelo enorme castelo, deixando sua dona em total desespero.
                 Eduarda ainda não podia se dar ao luxo de correr, mas já não necessitava mais das muletas, assim, seguiu em busca do seu lindo fujão, só rezava para que ele não encontrasse com a doutora.
              Pegou o celular para iluminar a escuridão que imperava nas outras partes da casa. Já era noite e como a lua fora encoberta pelas nuvens de tempestades, praticamente nada se enxergava ali.


                   A médica sentia que a qualquer momento seu cérebro explodiria.
                  Os flashes eram doloridos. Todo aquele maldito dia era revivido com riquezas de detalhes.
               A cena da esposa na cama, o momento que despertou e viu o carro virado, quando as chamas se apossaram cruelmente de sua mãe, destruindo-a, transformando-a em cinzas...
                   Com o punho fechado esmurrou a cadeira inúmeras vezes.
               Fora de si, deixou o escritório, seguindo para a entrada principal, abriu a porta, saindo, caminhou até tropeçar em uma raiz e cair de joelhos.
                Angelina permanecia lá, sentindo as fortes gotas lhe ensopar toda a roupa, a pele, os cabelos negros, porém nada daquilo podia abalá-la mais do que já estava.
                    Olhou para o céu, via a claridade dos relâmpagos e era como se voltasse a ver o fogo...
             Se não tivesse saı́do tão irritada... Não deveria ter pegado aquele carro... Deveria ter morrido... Ela quem deveria ter morrido não sua amada mãe...
                    Naquele momento as lágrimas se confundiam com a chuva.


              Eduarda ouviu o latido de Pigmaleão no hall. Ao chegar lá, viu o pequeno encolhido. Tomou-o nos braços, mas ficou surpresa ao ver a porta aberta.
                Tudo estava muito escuro, a tempestade ainda mais violenta. Seguiu pata fechá-la, porém algo lhe chamou a atenção. Iluminou com o celular e não pode acreditar no que via. Angelina jazia de joelhos toda ensopada e mesmo com o barulho da chuva podia ouvir os soluços que a sacudiam.
                 Hesitou em se aproximar, mas não por muito tempo.
             Colocou Pigmaleão no ú ltimo degrau da escada e seguiu até onde estava a médica.                                  Ajoelhou-se e os olhos negros se voltaram para si.
           -- Doutora. – Tomou-lhe o rosto entre as mãos. – Precisa entrar, vai acabar pegando uma pneumonia. – Precisou falar mais alto. – Venha!
              Mas Angel nem mesmo pareceu ouvi-la, nem mesmo vê-la, como se estivessem em transe total.
             Duda fitou os lados, pensava em algo para ajudá-la, mas estavam sozinhas. Naquele momento percebeu a angustia traduzido em lágrimas, sentia o desespero lhe sacudindo os ombros.
              Sem pensar nas consequências do seu ato, encostou os lábios aos dela. Via a surpresa naquele olhar arregalado, mesmo assim não parou.
                Fechou os olhos, sentindo a maciez dos lábios, a perfeita imperfeição do superior. Era tão delicado, mesmo que estivesse sempre brigando ou gritando. Espalhou alguns beijos rápidos sobre eles, até notar quando ela passou a lhe corresponder, dominando e se deixando dominar por aquele carinho.
            De joelhos, em meio à chuva, abraçaram-se como se fosse aquele o ú nico lugar que desejavam estar em todo o mundo.
               Angel se agarrou a ela como se fosse a sua tábua de salvação em meio àquele dilúvio.
             Duda permitiu que cada canto de si fosse explorado pela lı́ngua quente e fez o mesmo com a da médica. Gemeu ao notá-la sugando-lhe, chupando-a, fazendo-a peritamente... Correspondeu com a mesma paixão. Ousada, segurou-a pelos cabelos, mantendo-a cativa, não desejando que aquele contato cessasse.
              A Berlusconi acariciou-lhe os ombros, enlouquecida com a pele sedosa, com a textura do toque.
                 Um relâmpago clareou o céu, em seguida o estrondoso trovão se fez ouvir.
              O pequeno Pigmaleão se assustou, latindo diante da porta em busca da sua dona. As mulheres se afastaram, voltando-se ao mesmo tempo para o animal.
                Eduarda foi a primeira a sair do transe, levantando-se, tomou as mãos da médica, ajudando-a a fazer o mesmo.
               -- Vem comigo.
            Angelina não respondeu, apenas seguiu-a, mas ao chegarem ao hall, afastou-se um pouco quando Duda pegou o cãozinho nos braços.
               -- Está com medo dele. – Constatou. A morena deu de ombros.
              -- Ele é só um bebê, não vai te ferir. – Tomou-lhe a mão novamente. – Temos que tirar essas roupas ou vamos ficar doentes.
            Mais uma vez a bela mulher se deixou conduzir para ala norte, mas agora a sua dor não parecia tão forte como há alguns minutos.

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