Anjo caído -- Capítulo 4
O dia em Nova York estava quente e corrido para Flávia Tavares. Ela precisou resolver inúmeros problemas, depois seguiu até a universidade para conversar com o reitor sobre algumas pesquisas médicas que interessavam muito ao hospital.
Depois de quase duas horas de conversa, caminhou pelo enorme campos indo em direção a um restaurante.
Avistou a pessoa que gostaria que tivesse sumido da face da terra, porém tivera o desagrado de encontra-la e pior, fora praticamente obrigada a aceitar àquele encontro.
-- Já estava desistindo de esperar. – A jovem levou a xı́cara aos lábios com um meio sorriso. – Sei que não temos nenhum tipo de vı́nculo de amizade, mas eu realmente preciso falar contigo.
A loira permaneceu alguns segundos de pé diante da mesa.
Observou pela vidraçaria a beleza do parque. Crianças brincando e suas babás exibindo uniformes branquı́ssimos.
Respirando fundo, sentou.
-- O que você quer, Patrı́cia?
-- Quero que me ouça, me ajude, preciso muito falar com a Angel. Preciso que ela me escute, mas não consigo. Já liguei inú meras vezes e só dizem que ela não está, dê-me o número, um endereço, e-mail, algo que me faça ter esse contato.
A médica encarou os olhos amendoados.
Nunca gostara daquela mulher. Lógico que sempre apoiara a amiga com seu relacionamento, porém sempre achara a psicóloga muito artificial, fingida.
-- Depois de tudo o que você fez com ela o que deseja? – Disse perplexa. – O seu trabalho foi maravilhoso, pode acreditar que não precisa de replay.
-- Eu não tive culpa, juro que acabei me iludindo. Eu era muito jovem, não sabia o que fazia naquele momento. – Soluçou, levando um lenço de papel aos olhos.
Flávia não acreditava em uma única sı́laba que saia da boca dela, até mesmo as lágrimas considerava fingimento.
-- Olha. – Apontou-lhe o dedo. – Se você não está presa é porque a pessoa que deveria tê-lo feito decidiu não fazê- lo, mas se fosse por minha vontade você estaria mofando dentro de uma cadeia para pagar por todo o mal que fez.
-- Você acha que eu não já paguei o suficiente? – Colocou as mãos sobre a mesa. – Passo todos os dias da minha vida me recriminando pelo que fiz. Eu só desejo o perdão dela, desejo tê-la novamente ao meu lado, construir o futuro que ela sempre quis... Ter filhos... Nossa casa... Uma famı́lia.
A loira gargalhou de forma amarga.
Se aquela mulher que estava ali diante de si soubesse o que restara do doce anjo que um dia a amara, ficaria chocada.
Lembrava-se de quando Angelina acordara em um quarto de hospital. Da dor que havia em seu olhar, do ódio que suas palavras expressavam contra todos. Naquele dia percebera que sua amiga se fora para sempre e em seu lugar ficara aquela estranha que agia friamente, que não demonstrava e tampouco parecia ter algum tipo de sentimento.
Flávia se levantou, retirando algumas notas e colocando sobre a mesa.
-- Esqueça-a a Berlusconi e como crédito te darei um conselho: Não cruze mais o meu caminho. Patrı́cia a viu se afastar.
Lógico que a riquı́ssima Tavares não lhe auxiliaria em seu intuito.
Mas não iria desistir. Retornaria ao paı́s e iriam em busca da Angelina, não iria perder tudo o que sonhara um dia sem lutar antes.
O cheiro de flores estava por toda parte da sala de estar.
Duda estava ajoelhada diante de uma antiga lareira, limpando-a, tentando fazê-la funcionar para que pudesse usá-la quando estivesse frio.
Limpou o suor com as costas do braço.
Pegou o celular e percebeu que era quase uma hora.
Deveria ir esperar o almoço que pediu, pois pela mensagem que recebeu ainda pouco, a entrega já estava chegando.
Levantou-se rapidamente, mas antes de sair, observou tudo maravilhada. Iria pedir a José para trazer um carpete e algumas almofadas para tornar aquele espaço mais aconchegante.
Sorriu!
Angelina descia as escadas, quando se deparou as cortinas da sala aberta. O sol clareava todos os cantos. Quem poderia ter feito aquilo?
Nem sabia o motivo de ainda ter algum dúvida. Com certeza fora a estúpida da jovem que ocupava a casa consigo. Ao chegar ao térreo viu a porta se abrir e lá estava ela segurando uma sacola com algo que cheirava muito bem dentro.
Observou-a parada, fitando-a com aquele olhar meio que temeroso e divertido que lhe irritava completamente. Os trajes que ela usava era composto por um short jeans surrado, uma camiseta branca e trazia em seus cabelos presos em uma enorme trança um lenço amarrado.
A claridade permitia que observasse os traços delicados com mais atenção. Estava toda suja de fuligem.
-- Quem te deu permissão para abrir as janelas? –Indagou mantendo uma boa distância entre ambas.
Duda continuou parada, fitando a mulher que parecia ainda mais perigosa com aquela sobrancelha arqueada. Notou que ela usava luvas de couro.
-- Como está sua mão? – Deixou a sacola no chão, seguindo preocupada até ela. – Não deve abafar as feridas.
-- Não se aproxime! – A morena estendeu o braço para detê-la. –Já disse para não se meter em minha vida.
Eduarda respirou fundo, retornando para pegar a comida.
Vê-la sempre usando aqueles trajes pretos a fazia lembrar da forma sombria que ela sempre se apresenta. Inspirou fundo.
Deveria ter usado a outra entrada, mas não imaginou que encontraria a doutora do mal por ali, afinal, ela sempre vivia enfurnada em um daqueles inúmeros cômodos da casa.
-- O gato comeu a sua lı́ngua? – A morena indagou com ignorância. – Pensei que depois que fosse para a outra ala eu não teria o desprazer de vê-la por aqui. – Bateu forte no corrimão.
Eduarda observou o semblante da Berlusconi, além da raiva, havia uma expressão que denotava dor.
Deixou as bolsas no chão mais uma vez, seguindo rapidamente até ela.
-- Machucou-se? – Tomou a mão dela entre as suas. – Deixe-me ver. – Começava retirar a proteção, quando foi empurrada.
-- Como ousa me tocar? – Desvencilhou-se.
-- Apenas queria ver o que se passou com sua mão. – Justificou.
-- Isso não é da sua conta! – Gritou. – Não basta ter que tê-la em minha casa, ainda tenho que lidar com a sua petulância.
-- Acho desnecessário os seus rugidos e quanto a abrir as cortinas, o fiz porque precisava enxergar, não sou um morcego como a senhora. – Enfrentou-a, encarando-a. – Tenha um ótimo almoço.
Mas antes que ela seguisse até a ala norte foi segurada bruscamente pelo braço.
Os olhares das duas mulheres pareciam duelar e daquela vez, a jovem Fercodini não abaixou a cabeça, sustentando-o desafiadoramente.
-- Não esqueça quem eu sou. – Disse por entre os dentes.
-- Sim, eu sei quem é a senhora. Recordo de suas palavras de conforto quando minha mãe morreu. – Ironizou.
Angelina observou o verde escurecer.
Recordava-se daquele dia, mas um fato é que não sabia que a mãe da jovem tinha acabado de morrer.
Naquela manhã chegara ao hospital e viu seu pai de braços dados com a afilhada. Ficara muito irritada e quando a encontrou no corredor do hospital, saiu arrastando-a para sala. Quando ficou sabendo do que tinha acontecido com a Cecı́lia ficara transtornada, mas não teve coragem de ir até a menina, pois sabia que suas palavras soariam demasiadamente falsas.
A médica a soltou, afastando-se, seguindo rapidamente por uma das portas laterais.
Eduarda permaneceu onde estava, sentindo a mesma agonia da tantos anos atrás.
Não era uma pessoa que costumava guardar rancor, tanto que quando aceitou seguir até ali, o fez e prometeu para si mesma que tentaria passar uma borracha sobre os fatos do passado, porém a forma arrogante da filha de Antônio de agir era difı́cil de aguentar. Tentava, estava tentando, mas não era tão simples assim. Havia algo naquele olhar duro e insensıv́el que a provocava.
Decidiu retornar a sua parte da casa e o melhor era permanecer lá para que assim pudesse evitar aqueles encontros desagradáveis.
Ao chegar ouviu o celular tocar. Bruno!
Atendeu.
-- Oh, princesa, você sumiu, parece que foi tragada pela terra e nem mesmo me atende ou responde as minhas mensagens.
Eduarda sentou.
-- Desculpe-me, mas estive muito ocupada.
Na verdade não tinha nenhuma vontade de falar com o rapaz, ainda mais porque fora culpa dele a questão das drogas que foram achadas em sua mochila.
-- O que você anda fazendo? Dê-me seu endereço, quero te ver, estou com saudade.
-- Olha, Bruno, eu te ligo depois, agora preciso resolver alguns problemas. Beijos e até.
Não estava a fim de papear, ainda mais com o namorado. Sua mente tinha sido perturbada e precisava de tempo para retomar o controle.
O melhor era comer um pouco, em seguida continuaria com a limpeza.
Anos atrás...
-- Bom dia, meu amor! Angelina beijou-lhe os lábios.
Patrı́cia despertou, espreguiçando-se.
-- Nossa, fico feliz que tenha chegado. – Sentou-se.
A Berlusconi se aconchegou perto dela, tocando-lhe a face.
-- Por que está irritada? Aconteceu algo?
-- Você ainda pergunta? Ontem era a festa da Karina e te pedi para ir comigo.
-- Mas, amor, eu tinha plantão. Não posso simplesmente deixar meu trabalho para ir as festas. – Beijou-lhe a pontinha do nariz. – Eu sou residente.
-- Não, você é a filha do dono e pode fazer o que quiser. – Retrucou irritada. A morena levantou-se.
-- Isso não é importante, pois como médica preciso lembrar de que acima de tudo está a minha missão com quem necessita. – Retirou o casaco branco. – E também não quero que meu pai tenha motivos para ficar irritado comigo ainda mais.
-- Por favor, me poupe dessa besteira. Todo mundo sabe que seu pai só está interessado na assistente e na filhinha bastarda.
Angel caminhou até a janela, dando as costas para a esposa que repousava seminua na cama. Sentiu mãos lhe circundar a cintura, beijando-lhe e mordiscando-lhe o pescoço.
-- Você precisa fazer algo. – Colocou as mãos por baixo da blusa da morena. – Daqui a pouco ficará até mesmo fora do testamento do seu pai.
A Berlusconi virou-se para ela.
-- Não precisa se preocupar com isso. Minha carreira será brilhante, nunca vai faltar nada para ti.
-- Eu sei. – Mordiscou o lábio inferior, em seguida desceu a mão até a os botões da calça, desabotoando-a e colocando a mão sobre a calcinha. – Só estou me preocupando com os seus interesses, afinal, somos casadas e tenho que zelar por seu bem estar e da famı́lia que vamos construir em breve.
Angelina sorriu.
Seu maior sonho era ter filhos. Assim que terminasse a residência tentaria um processo de inseminação.
Dias atuais...
Era possível ouvir o barulho da chuva. Angelina se revirava em sua cama.
Suas dores estavam ainda mais fortes. Levantou-se.
Passara todo o dia sentindo a agonia do latejar dos seus dedos. Deitou bem cedo, porém não conseguiu pregar os olhos até aquele momento.
Precisava de gelo.
Necessitava de mergulhar sua mão para que pudesse amenizar a agonia que sentia em suas articulações. Vestiu o roupão.
Precisava ir até a ala norte. Era o ú nico lugar daquela mansão que tinha o que aliviaria suas dores naquele momento.
Caminhou em meio à escuridão. Estava acostumada e se sentia bem melhor sem ter que ver a luz, pois era como se a claridade debochasse das suas trevas.
Abriu a porta da ala norte e sentiu o cheiro de limpeza invadir suas narinas. Havia uma suave luz dando ao ambiente uma aparência aconchegante. Tudo estava bem arrumado e não havia resquı́cio de poeira em canto algum.
Pelo visto a tal da Fercodini estava se mantendo ocupada deixando tudo brilhando.
Seguiu até a cozinha e viu a mesa arrumada. Uma toalha alva repousava sobre ela, também uma fruteira com maçãs, bananas e laranjas.
Se não estivesse com tanta dor seria capaz de sentir fome. Comera pouco no almoço e não jantara.
Abriu a geladeira e tirou a saca de gelo, colocou-os dentro de um balde de alumı́nio, pondo a mão lá dentro.
Sentou-se, reconstando a cabeça para trás, permanecia com os olhos fechados, sentindo os membros começaram se anestesiar.
Eduarda tinha terminado de revisar quase todo o assunto do primeiro capı́tulo. Estava morta!
Seu cérebro não aguentava mais nada naquele momento. Precisava apenas de dormir e descansar a mente.
Levantou-se para guardar os livros e os cadernos.
O cômodo estava bem arrumado. Limpara tudo, deixando-o perfeito para suas necessidades.
O ambiente era grande. Havia uma cama de casal, uma mesinha de estudos, um guarda roupa, e um carpete meio encardido, porém já tinha pedido a Flávia para que José trouxesse cortinas novas e também o que estava muito desgastado seria substituı́do, assim, enquanto estivesse ali poderia se sentir bem.
O que deveria fazer era manter distante das outras partes da mansão, assim não correria o risco de ter problemas com a criatura que habitava aquele lugar. Não demoraria muito para retornar para a cidade. Bastava se sair bem nas avaliações e tudo voltaria a ser como era antes e na sua mente só restaria a lembrança daqueles dias naquela espécie de castelo.
Estava morta de sede, mas tinha esquecido de trazer uma jarra com água para o quarto, ainda pensou em deixar para o outro dia, mas sua garganta estava seca.
Suspirando, caminhou até o destino.
Tinha deixado a luz da sala ligada, mas não a da cozinha.
Parou estática ao ver quem estava sentada de olhos fechados e com a mão mergulhada em um balde de gelo. Pensou em ir embora sem ser notada, porém os olhos negros se abriram, fitando-a.
Ficou lá parada, observando-a.
Percebeu que a face dela estava corada. Os cabelos estavam soltos como de costume, mas meio que em desalinho.
Os lábios entreabertos deixavam ver os dentes alvos.
Estranhou ela não está usando aquele costumeiro sobretudo, agora um delicado roupão de seda enfeitava seu corpo.
-- Vai ficar aı́ me olhando como uma idiota?
Eduarda decidiu ignorá-la e tomar sua água, saindo o mais rápido possível de perto daquele ser irascível, mas sabia que algo não estava bem, então não conseguiu se manter em silêncio por muito tempo.
-- Não? – Observou sobre o ombro da médica, vendo as mãos cobertas de gelo. – Sem receber resposta, puxou uma cadeira, sentando ao lado dela. – Você não parece bem. – Instintivamente tocou a face de Angelina. – Você está queimando em febre.
-- Deixe-me! – Fez um gesto de cabeça para se desvencilhar do toque. – Importe-se com a sua vida e não com a minha.
-- Olha, eu não quero discutir, quero apenas ajudar. – Fitou o gelo. – Não acho bom que continuem mergulhadas assim, é melhor uma bolsa. – Levantou-se, inspecionando tudo detalhadamente.
Ela observou que a médica estava com os dentes trincados, sinal de que deveria estar sentindo muita dor. Sem se importar com as consequências, segurou-lhe o pulso, retirando-lhe a mão do recipiente.
A doutora não esboçou nenhuma reação, apenas ficou encarando-a, buscando no rosto bonito o asco, mas esse não veio.
-- Vem comigo, vou cuidar dos machucados.
Angelina sentia tanta dor que nem mesmo conseguia ouvir o que a jovem falava. Apenas, deixou-se guiar, sem que seus olhos reconhecesse o caminho ou até seus ouvidos pudesse decifrar aquelas palavras.
A noite passara lentamente.
Eduarda observava Angelina dormindo. A médica praticamente desabou sobre o leito. Fervilhava de febre e não parava de delirar. A maioria das coisas que saiam de sua boca não conseguiam ser decifradas, porém percebeu que em alguns momentos ela chamava pela mãe.
Sentada ao seu lado, tinha uma das mãos entre as suas.
Elas estavam feridas, não apenas pelos cortes, mas havia cicatrizes profundos. O que acontecera?
Pegou um pouco mais de gel continuando a massagem.
Sempre ouvira falar da jovem médica que tinha mãos de anjo. A brilhante cirurgiã que sua mãe chegava falando, dizendo como todos admiravam a filha de Antônio Berlusconi e acreditavam que ela chegaria ao topo rapidamente.
-- Meu Deus! – Sussurrou.
Sentiu uma lágrima solitária escapar. Fitou-a demoradamente.
Mesmo dormindo, não havia paz naquela expressão. O rosto denotava agonia... Tormento.
Dará um remédio para febre e um analgésico forte para cessar os espasmos que ela deveria estar sentindo. Ouviu o som do celular.
Pegou-o, saindo do quarto para não acordá-la.
-- Pensei que não ligaria. – Duda disse impaciente.
-- Perdoe-me, mas estava muito ocupada. O que houve?
-- A Angelina não está bem... – Hesitou. – Ela está doente, deve ter se machucado em algum lugar, as mãos estão feridas, muito feridas.
-- Onde ela está? – Flávia perguntou apreensiva.
-- Agora está dormindo na minha cama, mas teve muito febre. Você sabe como ela se feriu?
Duda ouvia a respiração da loira e tinha certeza que ela sabia, mas não parecia muito corajosa em falar.
-- Fale! – Insistia. – Terei que levá-la ao hospital.
-- Não... Não faça isso!
-- Mas como não? Você não tem ideia de como ela está. Provavelmente não poderá nem mesmo segura um bisturi
-- Maria Eduarda, eu sei como está, eu vi essas feridas, esses machucados que...
-- O quê? – Insistia impaciente.
-- Não poderei dizer nada. Escute, fique com ela, porém não chame ninguém, pelo menos não agora, você será médica e sabe os procedimentos básicos, então, faça-os, se não funcionar, ligue pra mim. Ficarei aqui esperando qualquer manifestação de sua parte.
Duda sabia que não adiantava insistir, pois percebera que Flávia não lhe diria o que realmente se passara, então apenas disse “sim”, encerrando a chamada em seguida.
A loira nem mesmo retirou a roupa, deitando do jeito que estava vestida. Estava muito preocupada com a amiga e depois de falar com Eduarda essa preocupação só fez aumentar ainda mais.
Como poderia convencer a Angelina que ela necessitava de ajuda. Deveria se submeter a algumas cirurgias. Sabia que não tinha garantias de que dariam certos, mas a medicina avançava a cada dia mais e poderia encontrar uma forma de amenizar o sofrimento que ela levava dentro de si.
Sabia que não deveria julgá-la, pois tudo que acontecera em sua vida era mais do que suficiente para muitos cometerem um ato extremo para deixar de viver, o que em parte ela fazia há tanto tempo.
Angelina perdera a fé, perdera a crença na humanidade. Nunca conseguira apagar da cabeça aquele dia fatı́dico.
Ambas tinham várias cirurgias naquele dia, porém a morena não aparecera e nem atendia o celular. Parecia que tinha sido tragada pela terra.
Lembrava-se de ter ligado para Patrı́cia e a maldita dissera que não sabia da esposa, na verdade ela nem se importava com a Angelina, pois se deliciava nos braços de Antônio Berlusconi.
Cobriu o rosto com as mãos. Como puderam ser tão cruéis? Levantou-se!
Precisava tomar um banho e ficaria esperando por notı́cias, pois se a amiga não melhorasse, não se importaria com a fúria dela, pediria que uma ambulância a buscasse levando para o hospital. Só temia pela segurança da Fercodoni, pois seria ela a aguentar toda a explosão.
O sol começava penetrar no quarto escuro pelos rasgos que apresentava a cortina grossa.
Angelina despertou lentamente e por alguns minutos ficou apenas a observar o teto, tentando lembrar-se dos fatos da noite anterior.
Tentou levantar, mas sua cabeça doı́a. Estava pesada, tonta, então decidiu não fazer esforço. Começou a mexer as mãos e ficou esperando para sentir o latejar, porém não veio.
Observou-a.
Estavam com ataduras, porem não incomodava como antes. Virou-se de lado e lá estava a jovem intrusa.
Sua mente começou a recordar o que passara antes e como fora parar naquela cama.
Eduarda Fercodini era uma garota muito bonita, a pele era branca como porcelana, o nariz bem feito e delicado, os lábios carnudos exibiam um tom avermelhado, a franja em desalinho lhe dava uma aparência infantil.
O pescoço esguio era adornado por uma corrente de ouro com o coração.
Ela usava uma camisola branca, justa, destacando, assim, os seios redondos e médios.
-- Está melhor?
A voz baixa de Duda a assustou.
-- Ainda está febril? – A jovem se sentou, tocando-lhe a face, preocupada por ela continuar muito corada.
Angelina lhe retirou a mão.
-- Estou bem! – Tentou levantar, mas sentiu a cabeça pesada.
A jovem deu a volta na cama para impedir a médica de sair da cama.
-- Deve descansar. – Tocou-lhe o ombro. – Passou toda a noite com muita febre.
-- Estou bem, quero ir para o meu quarto. – Fitou-a. – Deixe-me ir.
-- Sinto muito, doutora, ou a senhora deita e fica quietinha ou terei que chamar uma ambulância para levá-la ao hospital.
-- Quem você pensa que é para me dá ordens? – Tentou se desvencilhar, mas sentiu uma forte pontada na cabeça.
Duda percebeu, então aproveitou para ajudá-la a deitar novamente.
-- Veja, eu não estou te dando ordens, apenas cuidando para que você esteja bem. Angelina pareceu vencida, mas nada respondeu.
-- Vou preparar algo para você comer, precisa recuperar as forças. – Levantou-se. – Fique quietinha, volto logo.
A médica quedou-se lá observando a garota se afastar.
Sabia que aquilo deveria ser ordem de Flávia, afinal, o que ganharia Eduarda em ajudá-la, ajudar a mulher que não suportava.
Observou as ataduras.
Moveu os dedos lentamente, sentindo-os menos doloridos.
Com certeza a afilhada do seu pai deveria ter ficado enojado de ver suas mãos e as feridas que descansavam ali. Quem não ficaria?
Mordiscou o lábio inferior demoradamente.
Precisava que aquela menina fosse embora o mais rápido possível dali, não desejava ver a pena nos olhos dela e nem no de ninguém. Queria apenas ficar sozinha.
Cobriu os olhos com o braço.
Seu pai mesmo estando morto ainda infernizava a sua vida.
Quando Antônio morrera ficara surpresa em ser a única herdeira dos bens do milionário. Depois de tudo o que ele fez isso fora uma enorme surpresa. Com certeza imaginara que poderia apagar tudo o que fez com dinheiro, era assim que ele agia, achava que dinheiro podia resolver tudo, comprar todos ao seu redor.
Seus pensamentos foram interrompidos por Duda que entrava com uma bandeja.
Sentou-se sobre a cama com as pernas cruzada.
-- Pronto. – Esboçou um sorriso grande. – Já pode comer.
A Berlusconi a fitou.
A jovem tinha uma presença marcante, iluminada, cheia de vida que acabava lhe incomodando profundamente.
-- Deixe-me ajudá-la a sentar. – Se prontificou ficando de joelho sobre o colchão.
A morena se sentiu incomodada ao notar a minúscula vestimenta que deixava as coxas torneadas toda de fora.
-- Eu não estou aleijada, não precisa me tratar como se fosse. – Sentou-se, apoiando-se na cabeceira da cama.
-- Perdoe-me, doutora, só queria ajudá-la. – Voltou a se acomodar.
-- Por quê? Está com pena de mim? Saiba que não necessito disso.
Duda não respondeu, apenas respirou fundo, soltando lentamente o ar. Levantou-se!
-- Coma! – Pegou umas roupas no armário. – Irei tomar banho e quando retornar trocarei as ataduras das suas mãos.
Angelina deu de ombros, continuando em total inércia.
Patrı́cia ouviu a campanhia e se apressou para abrir a porta.
Um homem vestido elegantemente, tendo em torno de quarenta anos adentrou o espaço.
-- Senhora Oliveira? – Estendeu a mão. – Sou o detetive Fernandes.
Ela ignorou o cumprimento, apontando o sofá para que o homem sentasse.
-- Soube que sua agência é uma das melhores e que opera em todos os lugares do mundo.
-- Sim! – O homem assentiu orgulhosamente.
-- Preciso que encontre uma pessoa que parece que foi tragada pela terra. – Entregou-lhe uma foto. Fernandes observou a imagem e pareceu encantado com a imagem da linda mulher sorridente.
-- Perdoe-me a intromissão, porém necessito que me diga de quem se trata.
-- Ela é minha esposa. Estamos separadas há muito tempo e não tive mais notı́cias sobre ela.
-- Preciso do endereço, lista de amigos, tudo que possa ajudar nessa empreitada.
-- Eu não sei muito, mas o que posso dizer é que os endereços que tenho são inúteis e até os telefones que ela usava dão como inexistente.
Entregou-lhe uma pasta.
-- Aqui o senhor encontrará o necessário para começar a sua busca.
Patrı́cia estava disposta a fazer qualquer coisa para encontrar Angelina. Tentara através de Flávia, mas a médica não a ajudaria nem que fosse a última coisa que tivesse que fazer no mundo.
Nunca gostou da loira. Sempre teve a impressão que ela era apaixonada pela Berlusconi.
Mas não teria problemas. Nada e nem ninguém iria entrar em seu caminho. Encontraria a esposa e faria tudo para reconquistá-la e assumir o lugar que sempre esteve destinado para si naquela história.
Flávia despertou e imediatamente pegou o celular.
Não havia ligações, mas algumas mensagens e uma foto de Angelina dormindo. Sentiu um aperto no peito em ver seu doce Angel.
Como desejaria que ela voltasse a ser a mulher que fora um dia. Entusiasmada, feliz e que sempre trazia aquele sorriso, que em alguns momentos usava para debochar de algo que a loira tinha falado.
Foram os melhores anos de sua vida. Tê-la sempre ao seu lado e poder contar com seu apoio em todos os momentos, mesmo nos mais difı́ceis.
Às vezes fingia que nada daquilo tinha passado, que acordaria e encontraria a amiga no hospital reclamando do seu atraso ou lhe chamando para ir na ala de pediatria para verem as crianças.
Sim, ela adora estar ali, ficava brincando e dizendo como desejava poder ter um filho, como queria ter uma famı́lia com a Patrı́cia.
-- Maldita Patrı́cia!
Se ela não tivesse surgido na vida de todos, as coisas não teriam seguido aquele caminho árduo.
Duda sentia a água relaxar seus músculos e permanecia ali, sentindo-a dissipar sua raiva.
Não sabia como lidar com Angelina Berlusconi. Aquela mulher agia cada vez pior, mesmo quando a jovem só tentava ajudá-la.
O melhor era deixá-la voltar para a outra parte da mansão, assim se livraria de um estresse a mais, afinal, a médica não parecia interessada em seus cuidados.
Ensaboou todo o corpo, deliciando-se com a refrescância.
Recordou-se dos olhos escuros, que sempre denotavam frieza e impaciência. Os lábios eram sensuais, mas davam a impressão que não sorriam e aquela boca só era usada para falar coisas desagradáveis.
Cada vez sua curiosidade aumentava ainda mais sobre a filha do padrinho. Era demasiadamente estranho que ela vivesse isolada naquela parte tão remota, ainda mais que tenha deixado a profissão tão promissória, a riqueza que lhe fora deixada pelo pai.
Não havia amores? Um caso?
Apesar de ter aquele ar irritadiço, não se podia negar que ela era muito bonita, na verdade dizer que ela era bonita era até uma ofensa, pois ela lembrava uma deusa, talvez a Galateia, sim, a estátua que não tinha coração.
Decidiu se apressar, pois do jeito que seu anjo caı́do era teimoso, já deveria estar querendo ir embora. Esqueceu-se de trazer a calcinha, então preferiu se cobrir apenas com a toalha.
A bandeja repousava ao lado da cama quase intocada.
Angelina começava a tirar as bandagens quando Duda adentrou o quarto. A jovem seguiu imediatamente até ela.
-- Eu disse que faria isso. – Assumiu o trabalho.
A morena nada respondeu, apenas permaneceu encostada na cabeceira com os olhos fechados. Sentia as mãos macias e delicadas tomarem a sua, tocando-as sem receios.
Fitou-a encontrou os olhos verdes lhe inspecionando curiosamente.
-- O que aconteceu? – Continuou acariciando as feridas que pareciam terem inflamados.
A Berlusconi se sentia hipnotizada por aquele olhar, pelo toque que não lhe infligia agonia, mas algo mais parecido com prazer.
-- Termine logo com isso. – Ordenou. – Guarde sua curiosidade para seus amiguinhos.
-- Por quê? – Indagou com um sorriso de lado. – De que tem medo, doutora?
-- Não tenho medo de nada e nem de ninguém. – Falou por entre os dentes. – E não tenho nenhuma vontade de ficar jogando conversa fora com você.
Eduarda continuou sorrindo.
Limpou delicadamente as chagas, passando mais uma vez uma pomada. Ao terminar, beijou a palma da mão demoradamente.
Quando viu o olhar arregalado da médica, justificou-se começando o trabalho no outro membro.
-- Para sarar logo. – Disse meio sem jeito. Terminou a outra, em seguida levantou-se. -- Não colocarei ataduras, deixarei que o machucado respire.
Angelina nada respondeu, apenas desviou o olhar da jovem que tinha o corpo esbelto coberto com uma toalha curta e alva.
Quando voltou a fitá-la, perdeu o fôlego ao vê-la totalmente nua. A pele branca lembrava uma porcelana.
Os seios redondos exibiam um mamilo rosado, o abdome era liso, os quadris redondos...
Fechou os olhos para não seguir com a inspeção, pois se sentia invadida por frenesis que lhe sacudiram os ombros.
Aquilo não podia estar acontecendo.
Depois de todos aqueles anos seu desejo renascia das cinzas. Seu corpo estava agitado, cheio de luxuria. Sempre fora uma mulher ativa sexualmente. Na verdade, adorava se entregar aos prazeres do corpo e não havia preconceito quanto a métodos ou parceiros.
Patrı́cia, muitas vezes, reclamava da sua fome, o que a fazia deixar a libido mais sob controle para que não houvesse brigas em sua relação.
Depois de todos aqueles anos seu desejo renascia das cinzas. Seu corpo estava agitado, cheio de desejo. Jamais imaginara que dentro de si ainda havia aquele tipo de sentimento.
-- Está bem, doutora? – Indagou, aproximando-se.
Eduarda percebeu uma expressão lancinante no rosto bonito.
A morena observou o rosto muito próximo do seu. Os olhos dela pareciam duas esmeraldas, brilhavam como as estrelas do céu.
-- Deixe-me em paz! – Disse de forma agressiva. – O fato de eu estar aqui não significa que temos algum tipo de amizade ou algo assim. Não desejo ter nenhum tipo de vı́nculo contigo.
Duda relanceou os olhos de forma tediosa.
-- Ok! – Seguiu até uma poltrona. – Vou estudar um pouco.
-- Não precisa ficar aqui. – Falou impaciente. – Olha, eu preciso falar com a Flávia. – Sentou-se, tomando cuidado para não se apoiar nas mãos. – Eu sei que você fala com ela, então, ligue! – Ordenou.
-- Sabe, doutora, eu acho que a senhora está acostumada a sair dando ordens para o mundo, porém comigo vai ter que ser diferente. – Começou a ler. – Não sou sua empregada, melhor, não sou sua escrava.
Angelina estreitou os olhos ameaçadoramente.
-- Como ousa me desafiar assim? Quem você pensa que é? – Tentou se levantar. A Fercodini correu até ela.
-- Calma, não vá fazer nada que te deixe mais doente. – Fê-la sentar. – Ligarei agora mesmo. – Pegou o celular sobre a mesinha, discando. – Pronto! – Entregou-lhe.
Angelina aceitou.
-- Agora saia e me deixe falar com ela.
Eduarda pegou os livros se afastando.
Flávia estava saindo do banho quando ouviu o celular tocar.
Imediatamente foi até ele, viu o número da afilhada de Antônio. Atendeu imediatamente.
-- Oi, Duda, como está a Angel? – Indagou preocupada.
-- Não me chame assim!
A loira teve um susto ao ouvir o tom gélido. Pigarreou.
-- Olá, Angelina! Como você está?
-- Eu não acredito que você foi capaz de mandar essa pirralha para cá quando eu disse para não fazê-lo. A médica sabia que a discussão iria demorar, então decidiu sentar.
-- Não havia escolhas. Imagina se os jornalistas começassem a fuçar tudo, em pouco tempo sua caverna estaria cheia da imprensa sensacionalista.
-- Isso não me interessa! – Gritou.
-- Ah, não interessa? Engraçado, porque seu advogado gasta um dinheirão com notı́cias falsas sobre sua vida que todos sabemos que não passa de mentiras.
Deu uma pausa, ouvindo o som da respiração pesada do outro lado da linha.
-- Entenda que se mandei a Maria para aı́ foi porque não havia outra saı́da.
-- Levasse-a contigo. Afinal, o que garante que ela não vai sair por aı́ especulando e falando as quatro ventos sobre a minha vida.
-- Ela não falará, confio na pessoa dela.
-- Ah, não diga. Uma fedelha que se envolveu em coisas erradas quando deveria estar estudando e cuidando da própria vida.
-- Meu Deus, Angel, como é difı́cil lidar contigo, na verdade é impossível.
-- Não estou pedindo para que você lide comigo, não preciso disso.
Flávia ainda abriu a boca para responder, porém ouviu o som que denunciava o encerramento da chamada.
Amando!
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