Anjo caído -- Capítulo 1


             A noite estava fria, mesmo assim a lua majestosa podia ser vista embelezando o céu de poucas estrelas. O caminho deserto e escuro seguia iluminado pela deusa prateada que parecia reinar sobre as trevas.
            Doutora Flávia Tavares sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Acelerou ainda mais o veı́culo. Ligou o rádio do carro, tentando se distrair com a voz da locutora que traduzia uma canção que falava sobre o amor.
            Torceu o nariz, voltando seus pensamentos aos atos que deveriam ser feitos daı́ a pouco tempo.
            A loira sabia que não deveria estar fazendo aquilo, mas não havia outra ação para fazer naquele momento, precisava incitar uma reação a sua melhor amiga.
           O tempo passava e ela não conseguia aceitar aquela forma de Angelina agir, mesmo tendo passado por tudo aquilo... Um verdadeiro inferno fora mergulhado a sua brilhante vida, tudo por confiar em uma maldita desgraçada.
             Por trás das montanhas conseguia visualizar a enorme mansão surgindo como se fizesse parte daquela paisagem natural.
             Como alguém em sã consciência poderia viver ali?
           Ao virar na curva, deparou-se com a construção em estilo gótico, parecia mais mal assombrada do que antes.
             A casa de três andares parecia deserta, porém ela sabia que a Berlusconi se escondia por trás daquelas paredes frias. Infelizmente não era mais sua amiga que todos conheciam como um anjo, a escuridão parecia ter tomado conta dela.
             Estacionou em frente ao enorme portão. Não havia luzes para guiar seus passos, só o luar clareando o seu caminho.
             Pegou o celular na bolsa. Focou no enorme cadeado e ao tentar abrir, as dobradiças rangeram e mais uma vez a mulher precisou de todo seu autocontrole para não gritar.
            Adentrou o enorme espaço, tomando cuidado para não tropeçar nas ervas daninhas que haviam destruı́do o bonito jardim e se apossado da passagem que levava até a entrada. Subiu os degraus que levavam a enorme porta, pegou as chaves, abrindo-a.
                 O cheiro de mofo invadiu suas narinas. 
                 Espirrou!
               Acendeu a lanterna, caminhando devagar até o segundo andar. Estava frio lá dentro, gélido como o coração do ser que habitava.
               -- O que faz aqui?
              A voz rouca e baixa fez eco.
              Flávia gritou assustada, virando-se com a mão sobre o peito esquerdo.
              -- Deseja me matar?
             -- O que faz aqui? – Estreitou os olhos. – Não me lembro de estar esperando visitas, pior, não recordo de ter convidado ninguém.
              A loira nem teve tempo de responder, pois a figura sombria, vestida de preto, entrou em uma das portas laterais. Respirou fundo, seguindo-a.
             Observou uma vela iluminando o espaço. Viu-a sentada diante de uma enorme escrivaninha toda cheia de poeira.
             Ela não mudara nada em todos aqueles anos. Os cabelos estavam menores, negros, na altura dos ombros. Ela mesma cortava as madeixas, pois antes, a médica usava-os compridos
              Alta e magra, sempre fora linda, ainda mais por exibir aquele ar aristocrático.
         Todos a chamavam de doutora Angel. Todos a viam como um anjo que adorava cuidar dos outros, de se doar totalmente em seu trabalho. Era muito jovem quando se formou em medicina e traçava um caminho de sucesso como cirurgiã quando as coisas mudaram drasticamente.
            Fitou a cicatriz em seu lábio superior, encarou os olhos escuros e viu a irritação presente neles. Conheci-a desde criança, estudaram juntas e unidas salvaram muitas vidas.
                Aproximou-se, mas não o suficiente. Preferia que a enorme mesa ficasse entre elas.
            -- A afilhada do seu pai está com problemas sérios. – Disse de supetão e ficou observando a expressão da outra ficar ainda mais enfurecida.
            -- E o que te faz pensar que isso me interessa? – Falou por entre os dentes. Mesmo tendo sido usado o tom baixo, Flávia conseguiu decifrar cada palavra. A doutora sentou, pois sabia que a conversa duraria mais do que o necessário.
            -- Quando o seu pai morreu você foi nomeada ú nica herdeira de todos os seus bens e junto a isso também há a obrigação de arcar com todas as despesas referentes à educação e bem estar da Maria Eduarda. – Deu uma pausa, observando as reações da morena. – Bem, enquanto a jovem não completar vinte e cinco anos ou contrair casamento, você é responsável por ela.
             -- Não há nada escrito em lugar nenhum que diga que sou a tutora dela.
           -- Não é necessário que isso seja dito, pois mesmo que você não seja, ela está totalmente ligada a sua famı́lia e tudo o que se passar com ela refletirá totalmente em ti.
             -- Isso não me interessa. Há tempos abri mão de toda essa maldita herança e a ú ltima coisa que desejo é ser a responsável pela filha da amante do meu querido pai. – Disse com escárnio.
              -- Angel...
             -- Não me chame assim! – Gritou, batendo forte sobre a madeira. – Sou Angelina Berlusconi.              
               A loira fitou-a por alguns segundos, então respirou fundo para não perder a calma.
            -- Certo! Mas para mim você continua sendo a doutora Angel, o que aconteceu não pode mudar isso. – Retrucou pausadamente..
              O silêncio pareceu reinar, apenas se ouvia a respiração de ambas.
           Flávia observou o semblante da mulher a sua frente ficar ainda mais carregado, porém era possível ver naquele olhar a dor que ela tentava mascarar com o ódio. Sabia como fora dolorido tudo o que se passou e mesmo tendo passado quase quatro anos, o tormento parecia ficar cada vez maior.
            Lembrava-se da última vez que ambas estiveram juntas na sala de cirurgia, porém elas não trabalhavam lado a lado, naquele dia era a vida da doutora Angel que estivera em suas mãos.
               Deu a volta, seguindo até ela.
             Tomou delicadamente suas mãos. Sentiu-as ásperas devido às cicatrizes. Beijou-as, fitando os olhos que se mostravam cada vez mais insensıv́  eis. Uma lágrima solitária molhou o seu rosto.
         -- Esqueça o que passou... Volte a ser o anjo que iluminava a vida de todos. – Pedia emocionada. – Venha comigo.
              Estarei ao seu lado para que possamos enfrentar juntos todos os desafios que surgirem,
           Lembrou-se das noites passaram juntas, cuidando felizes dos pacientes. De como se sentiam realizadas exercendo a profissão que sempre sonharam desde que eram meninas que brincavam de bonecas e corriam de um lado para o outro.
              Angelina desvencilhou-se do toque de forma brusca.
            -- E como voltarei a fazer isso? – Aumentou o tom de voz. – Esqueceu-se que minhas mãos se tornaram inúteis?
            Esqueceu-se que sou uma maldita inválida?
           A loira levantou-se.
          -- Você sabe que não é verdade. Pode se submeter a cirurgias... A medicina avança a passos largos...
         -- Chega! – Postou-se de pé ainda mais furiosa. – Seu maior erro foi ter salvado a minha vida naquele maldito dia.
           – Apontou-lhe o indicador. -- Eu nunca a perdoarei por isso.
           Flávia passou a mão pelos cabelos dourados. Estava cansada daquela teimosia. Voltou para a cadeira que antes ocupava.
           -- O que devo fazer com a Maria Eduarda? – Indagou mudando de assunto. – Querendo ou não, se essa menina continuar aprontando a imprensa virá a sua busca, imagina como vão adorar retratar e fazer um verdadeiro escândalo com sua história. – Retirou uma carta da bolsa, pondo sobre a mesa. – O promotor está a sua procura.
          Observou a apreensão presente no rosto da Angelina. Sabia que a ú ltima coisa que desejava era que as pessoas especulassem sobre sua vida.
            -- O que essa maldita pirralha está fazendo de tão errado? – Indagou por fim.
        -- Além de trancar o curso de medicina? – Começou calmamente. – Está participando de corridas ilegais e ainda recai sobre ela a acusação de vendas de entorpecentes.
             -- Mas como? – Indagou perplexa.
            -- Bem, levando em conta que ela retornou do internato não há ninguém para lhe ditar regras, fica difı́cil não sucumbir aos prazeres do mundo.
           -- Arrume um marido e case-a! – Disse simplesmente. – Há dinheiro suficiente para comprar um esposo. Fale com meu advogado e peça para ele agilizar isso.
            A médica ficou perplexa com o que ouvia.
           -- Pensei que para casar fosse necessário amor? – Indagou arqueando a sobrancelha.
        -- Amor não é necessário quando se tem bilhões. – Respondeu amarga. – Pagarei o que for necessário para me livrar desse problema.
          A loira maneou a cabeça. Parecia totalmente decepcionada com aquela mulher que estava diante de si.
           -- Faça isso você, pois eu não conseguiria tratar de um “ negócio” desse tipo. – Levantou-se. – Porém, enquanto sua fábrica de casamentos não funciona, mandarei que Eduarda venha morar contigo.
           Angelina deu a volta, seguindo até ela, segurou-lhe o braço.
       -- Está louca? Não a quero aqui, não desejo ninguém aqui e ainda mais uma fedelha problemática.
            -- Sinto muito! – Delicadamente retirou-lhe a mão. – O que eu tinha que fazer já fiz. 
            A morena a viu se afastar, permanecendo ali, até sentar pesarosamente. Por que as pessoas não a deixavam em paz?
                  Quando fora viver naquele lugar tão afastado, o fizera porque desejava conviver apenas com sua dor. Não desejava a reprovação e nem a pena de ninguém.
                     Fechou os olhos, permanecendo ali, sentindo o enorme vazio que fazia parte de si.
                    Não entendia o motivo de continuar viva, como desejara ter morrido naquele maldito dia.



                  Maria Eduarda observava o bonito consultório.
            Mexeu-se no assento, inquieta. Tivera que acordar cedo naquele dia, pois o motorista da doutora Flávia fora lhe buscar.
                 Observou a foto que descansava sobre a mesa.
             Angelina  Berlusconi  sorria  para  a  loira,  vestiam  roupas  de  cirurgias.  Era  possível  ver  a  felicidade  no  olhar  de ambas.  Não tivera muito contato com a morena, apenas a viu uma única vez na vida e fora suficiente para não desejar vê-la nunca mais.
                Ouviu o som do celular.
             Seus amigos haviam mandado mensagem. Naquele dia tinha combinado um passeio de lancha com um rapaz que conhecera na boate.
                Estava respondendo quando a porta se abriu, interrompendo-a.
                -- Olá, Eduarda!
                Flávia fitou a bonita garota.
             Conhecera-a quando a mãe da pequena morrera, deixando-a sobre a guarda do dono daquele hospital. Infelizmente, o poderoso Antonio Berlusconi não vivera o suficiente para cumprir com sua responsabilidade sobre a vida daquela mocinha.
           -- Olá, doutora. – Sorriu simpática. – Algum problema? 
          A médica deu um meio sorriso, sentando ao lado dela. Observou-a com atenção por alguns segundos.
           Ela era linda, tinha se tornado uma bela mulher, mas suas atitudes nos ú ltimos tempos não eram uma das melhores.
             -- Eduarda... – Começou hesitante. – Eu fui visitada por um promotor e se você e seus amigos ainda não foram detidos foi pelo poder do nome que a protege.
            A jovem abriu a boca para falar, mas ficou quieta diante do gesto feito por Flávia.
           -- Você não é livre! Tem vinte e dois anos, mas só daqui a três anos terá a liberdade para tomar suas próprias decisões, ou se casar até  lá. – Tocou-lhe a mão. – O senhor Antônio se estivesse aqui iria fazer o possível para que você  não se desviasse do caminho que ele traçara para ti.
          -- O que quer dizer com isso? – Levantou-se. – Meu padrinho está morto, não há ninguém que se importe comigo, quanto ao dinheiro, estou arrumando um trabalho para arcar com minhas despesas.
         -- Trabalhar ilegalmente? – Arqueou a sobrancelha. – Você vai de mal a pior, até o curso de medicina você trancou. – Repreendeu-a.
          -- O fiz porque não tinha como arcar com as despesas e quanto a trabalhos ilegais, aquilo foi uma armação, não tenho nada a ver com aquelas drogas.
            A loira encarou os olhos verdes, via a determinação presente neles. Apontou a cadeira para que ela se acomodasse novamente.
              A garota hesitou, mas fez o que a outra pediu.
             -- O senhor Antônio deixou mais do que o necessário para arcar com tudo o que você precisar.
             -- Eu não quero! – Disse determinada. – Não desejo ser mais humilhada pela filha dele. – Passou a mão pelas madeixas negras. – Minha mãe tinha acabado de morrer, quando a “ doutora Angel” me arrastava para uma sala e tirava meu sangue para fazer um maldito teste de DNA. – Engoliu em seco. – Ela manchou a memória da minha mãe. Não quero nada dessa famı́lia.

             Flávia entendia o que ela passava. Realmente, Angelina tinha uma verdadeira perseguição com a mãe daquela menina e lembrava bem do dia que aquilo tinha se passado. Não reconhecera a amiga naquele momento, não combinava com a forma doce que ela sempre agia.
               Mordeu o lábio inferior.
            Sabia que suas próximas palavras não seriam fáceis e pior, seria uma batalha e tanto, entretanto sabia como fazê- la aceitar.
          -- Você não tem escolha quanto a isso. – Falou baixinho. – Como o senhor Berlusconi está morto, a única pessoa que arcará com a responsabilidade sobre sua vida é a única descendente dele.
             Percebeu os olhos verdes se arregalarem em um misto de terror e surpresa.
             -- Não...
            -- Eu sinto muito, mas se você não aceitar o que está sendo proposto, suas ações refletirão em todos que estão envolvidos na sua vida.
            -- De que está falando? – Perguntou confusa.
             -- Seus amigos serão presos e você junto com eles. – Observou-a atentamente. – Não estou dizendo que viverá com a Angelina por muito tempo, apenas passará uns dias longe de toda essa confusão que você mesma armou.
             -- Meus amigos não fizeram nada e assumirei toda a culpa se assim for necessário. – Arqueou a cabeça desafiadoramente.
             A loira não deseja realmente deixar aquela garota nas mãos de Angelina, porém não tinha outra escolha, pois temia que o caminho que a jovem traçasse fosse perigoso de mais. Pensara em assumir aquela responsabilidade, mas o trabalho corrido não deixaria que fizesse isso, sem falar que teria que viajar. Passaria alguns dias fora do paı́s.
            -- Ficará com a Angelina por pouco tempo. – Tentava amenizar a situação diante do olhar assustado demonstrado pela outra. – Assim que retornar aos estudos e mostrar a todos que voltou a ser a jovem responsável, poderá retornar.
                 Duda maneou a cabeça negativamente.
               -- Aquela mulher nunca me aceitaria por perto.
            -- Como você, ela também não tem escolha, será pouco tempo, nem mesmo precisarão se encontrar, basta que fique com ela.
              Eduarda sentia o controle de sua vida ser tomado miseravelmente de suas mãos. Voltou a fitar a foto que estava sobre a mesa.
             Há tempos não sabia daquela mulher. Na verdade, nunca se importara em saber algo sobre ela, porém naquele momento sua mente fervilhava de perguntas. Poderia simplesmente levantar e mandar tudo para o inferno, mas deveria pensar nas pessoas que estavam envolvidas naquele problema.
            -- Quanto tempo? – Indagou, parecendo se conformar com o destino que lhe aguardava.
          -- Até que a promotoria perceba que seu comportamento mudou. Voltará à universidade, tire notas boas... Comporte-se...
            -- Mas as aulas só retornarão em Janeiro. – Explicou.
          -- Falei com o reitor e ele está disposto a deixar que você faça as provas, assim não perderá o semestre. Estude e se prepare que quando tiver tudo pronto, você irá fazer as avaliações.
             Duda observou a bonita loira que a fitava. Ela assumira, de certa forma, a responsabilidade da sua vida. Gostava dela, do jeito agradável e da forma de lidar com as coisas.
             Flávia deveria ter uns trintas anos, mas agia de forma que nem parecia que era poucos anos mais velha. Depois de algum tempo em silêncio, Eduarda voltou a falar.
              -- E o meu namorado?
              -- Não serve para ti. Graças a ele você se envolveu nesses problemas todos. – Disse enérgica.
              -- Não acredito que até nisso vocês irão se meter. – Falou aborrecida.
             -- Infelizmente não será permitido esse relacionamento e eu espero que você não fale sobre ele com a Angelina. – Advertiu-a.
              A loira sabia que se a amiga soubesse da existência de um namorado faria qualquer coisa para que ela a jovem se casasse com ele para se livrar do papel que deveria desempenhar.
              Duda apenas assentiu com um gesto de cabeça.
              -- Quando eu sigo para a caverna da doutora Angel? 
               Flávia a repreendeu com o olhar.
              -- Acho melhor que a chame de Angelina. – Levantou-se. – Hoje mesmo meu motorista irá te levar. Não poderei ir, pois tenho cirurgias para executar.
               -- Não preciso de motorista! Dê-me o endereço que irei com o meu carro.
           -- Como? Que eu saiba sua carta de habilitação foi retida por sua participação em corridas ilegais. – Disse aborrecida. -- Arrume suas coisas que o José irá te levar.
               Eduarda ainda abriu a boca para retrucar, mas acabou baixando a cabeça, se afastando, saiu do consultório. 
               A loira praticamente desabou sobre a cadeira.
             Não sabia se aquela fora a solução mais acertada para aquele problema, porém não havia outra coisa para fazer naquele momento.
                Cobriu o rosto com as mãos.
                Como a Angelina agiria com a presença de Eduarda? Uma guerra estaria por vir?
                -- Que Deus nos proteja...

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