A condessa bastarda -- Capítulo 26

           Maria Clara não conseguiu conciliar o sono. Sua cabeça doı́a, sua mente estava conturbada com imagens desconexas. Virou mais uma vez para o lado, não havia uma posição que lhe ajudasse a relaxar. Para completar sua perna começou a incomodar. Desistindo de tentar dormir, sentou na cama, pegando uma caixa que estava à cabeceira. Abrira todos os presentes que ganhara, menos o da condessa. Na verdade, nem mesmo tinha aceitado, então quando deitou ficou surpresa ao ver a embalagem ali.
              Pegou-a.
          O perfume da ruiva estava presente. O cheiro dela lhe fazia se sentir incomodada, como se fosse uma afronta. 
             Abriu.
        Havia um cavalo branco esculpido em madeira. Ficou encantada com a sensibilidade do presente. Sorriu, maravilhada.
             Havia uma inscrição... “ Branca de Neve.”
           Como alguém tão sem coração podia ter tanta sensibilidade para lhe presentear com algo tão delicado?



             Vitória despertou cedo, vestiu o biquı́ni e foi para a piscina da cobertura.
        Ficou um bom tempo nadando, tentando relaxar os músculos. Passara a noite sendo assombrada por demônios do passado.
            Depois de atravessar a nado a grande extensão, parou para respirar.
           -- Está treinando para as olimpı́adas.
          Ao levantar a cabeça se deparou com a delegada. Deu de ombros, saindo da água, seguindo até a espreguiçadeira, sentando-se.
            Valentina se acomodou ao lado dela.
             -- Você está bem? – Fitou-a preocupada.
          A esposa de Miguel nunca viu a ruiva tão abatida. Ficara tocada na noite anterior com a dor que viu em seus olhos ao ser desprezada por Clara.
             Vitória colocou os óculos escuros, deitando-se.
            Alguns segundos se passaram, antes que ela respondesse.
           -- Só ficarei bem quando você conseguir colocar o miserável do Marcelo atrás das grades. – Falou por entre os dentes. – Meu desejo é matá-lo com minhas próprias mãos... Fazê-lo sofrer, fazê-lo pagar por tudo que fez.
           -- Você precisa ter calma. – A delegada se virou para ela. – Não quero que volte para a fazenda, não antes de tudo se resolva.
              -- Por culpa desse desgraçado a Clara perdeu a memória.
          Valentina não podia ver os olhos da ruiva, mas tinha quase certeza que os encontrariam nublados.
             -- Você precisa ter paciência...
           A delegada não tinha intimidade com a condessa, na verdade, nem mesmo era simpatizante de suas atitudes arrogantes, porém agora conseguia perceber que ela realmente amava a neta de Frederico.
        -- Paciência?! – Indagou perplexa. – Você já viu a forma como ela me olha? Nem mesmo quando a conheci, via esse tipo de desprezo no olhar dela. – Levantou-se. – Eu não sei quanto ainda vou aguentar, pois a minha vontade é mandá-la de volta para os Duomonts e depois ir para bem longe para esquecer tudo isso.
           Valentina se levantou, colocando a mão em seu ombro.
           -- Você a ama?
         A condessa não respondeu, pegou o roupão e caminhou de volta, mas encontrou Maria Clara parada na passagem que levava ao apartamento.
            Fitou-a intensamente e depois passou direto.


           Clara tinha ido até a piscina quando viu que a condessa estava conversando intimamente com a esposa de Miguel. Achou suspeito e já pensava em retornar para seu quarto quando Vitória veio em sua direção. A ruiva não a cumprimentou.
           A garota caminhou até onde estava Valentina. Havia uma mesa com um enorme guarda-sol, decidiu sentar. Adorava ficar ali, tinha uma vista perfeita e podia ficar pensando na vida sem se incomodar com a presença da ruiva, pois raramente ela ia até lá.
        -- Bom dia, Maria Clara. – A delegada puxou a cadeira sentando. – Como você está? Passou a noite bem? 
           Ana apareceu trazendo uma bandeja com sucos, leite, pães, queijos e frutas.
          -- Posso fazer uma pergunta? –A jovem Duomont disse quando a empregada se afastou.
          -- Sim! – Valentina serviu o suco para ambas.
         -- Por que não prendeu a condessa quando ela cortou a sela do meu cavalo ou porque permitiu que ela se aproximasse de mim se havia uma ordem de restrição?
          -- Quem te contou isso? – Perguntou surpresa.
          -- Minha mãe me disse tudo o que aconteceu, ela me falou coisas horríveis que essa mulher fez.
         -- Eu acho que você não deveria acreditar em tudo o que lhe dizem, ainda mais quando é a sua mãe a falar.
          -- Como ousa dizer algo assim? Eu jamais duvidaria das palavras da minha mãe ou de qualquer um da minha famı́lia. – Retrucou irritada.
        -- Bem, o que lhe digo é que a Vitória não cortou a sela do seu cavalo, nem antes e tampouco agora. – Disse firme.
          -- Quais provas pode me mostrar para que eu acredite? – Pegou as muletas, levantando-se. – Até mesmo essa mulher que defendes tentou me pisotear com um cavalo, quando eu não podia me defender, pois estava em situação fı́sica pior.
          -- E se eu dissesse que quem provocou o acidente que você sofreu agora foi o seu amado sogro? – Levantou a sobrancelha irritada.
              Clara a fitou, incrédula.
              -- Por qual motivo ele faria isso contra mim? Sou a futura esposa do filho dele.
              -- Não contra você, mas ele desejava matar Vitória Mattarazi.
              A jovem pareceu ainda mais perplexa com o que estava ouvindo. Não! Conhecia Marcelo desde que era uma garotinha e tinha certeza que ele tinha uma boa ı́ndole, com certeza isso deveria fazer parte de um plano da condessa para prejudicar o prefeito.
              -- Eu não acredito!
             A delegada a observou se afastar lentamente e teve vontade de bater na cabeça de Clara, quem sabe assim a memória dela voltava a funcionar.
            Não conseguia acreditar que aquela que estava a sua frente ainda pouco era a mesma jovem que via os olhos brilhar quando se tratava da ruiva. Lembrou-se do dia que as viu no rio, quando tinha se entregado ao desejo, naquele momento leu nos olhos negros o amor que ela sentia pela inimiga da sua famı́lia.
              Levou o copo a boca tomando todo o conteúdo.
            -- É , condessa, vamos ver como à senhora vai resolver esse problema e conquistar novamente a sua princesa.
             Miguel retornou para o interior depois do almoço junto com a famı́lia. Clara não se despedira deles, alegou não se sentir bem e ficou no quarto.
           Vitória pediu a Ana para ajudar a Clara a se vestir, pois teriam que ir ao médico, era necessário ver a neurologista. A condessa terminava de se arrumar quando a empregada entrou.
           -- O que houve?
            A jovem pareceu assustada.
            -- Ela disse que não irá.
            A ruiva vestiu a jaqueta de couro e saiu.


          A jovem Duomont estava triste. Falara com Marcos e o rapaz contara que sua famı́lia estava sofrendo perseguição por parte da condessa. Até mesmo seu pai fora acusado injustamente por um empregado da ruiva como quem mandara roubar os animais e cortar a sela.
             A porta de comunicação se abriu e lá estava a odiosa mulher.
            -- Como ousa entrar assim em meu quarto? – Clara segurou tão forte as muletas que sentiu dor nas articulações dos dedos.
           -- Vista-se, pois você precisa ver a neurologista. – Ordenou ignorando as palavras da outra.
           -- Eu não irei a lugar nenhum com a senhora! – Levantou o queixo, desafiadora. – Não desejo ficar em sua presença. 
             Vitória respirou fundo, parecia estar contando mentalmente para não explodir.
          -- Você tem uma consulta ou por acaso não quer recuperar suas lembranças? – Indagou se contendo.
            -- Por que eu deveria querer recordar? Para me lembrar das coisas terríveis que a poderosa condessa fez? 
             A ruiva caminhou até ela, segurando-a pelos ombros, encarando-a, parecendo querer desnudar sua alma.
              -- Do que tem medo? De descobrir que mesmo eu sendo um monstro, você se apaixonou por mim?
           Os olhos negros arregalaram com o que acabara de ouvir. Abriu a boca, mas as palavras pareciam presas em sua garganta.
              -- Sim, Maria Clara Duomont, você está apaixonada por mim e eu por você. 
              Clara pareceu recuperar a lucidez, afastando-se.
             -- Mentira... – Falou por entre os dentes. – Mentira! – Gritou. – Eu tenho um noivo, irei casar com ele. – Mostrou a aliança. -- Jamais teria algo contigo...
            Vitória tentou controlar a personalidade forte, mas ouvir as últimas frases da mulher que amava fora o limite para sua paciência.
              A jovem Duomont observou o sorriso sádico que se desenhava naquele rosto arrogante, não teve tempo de se defender, tendo a boca capturada. Não teve como empurrá-la, pois estava apoiada nas muletas, entretanto cerrou os lábios para não permitir o contato, porém sentia a lı́ngua contornando a curva de sua boca... Sentiu-a pressionar, então Vitória se afastou.
           -- Você tem dez minutos para ficar pronta ou volto aqui e eu mesma a vestirei. – Piscou ousada. – Imagina como vou amar vê-la nua...
              Clara teve ganas de gritar, de brigar, mas permaneceu ali, limpando freneticamente os lábios com as costas da mão. Não!
               Era mentira!
             Não acreditava em nada que aquela mulher dizia, com certeza fazia parte de algum plano sujo. Tentou controlar a respiração, podia ouvir as batidas aceleradas em seu peito.

               O caminho para o hospital fora feito em total silêncio.
               Vitória sabia que perdera a cabeça, mas infelizmente não tivera como se controlar.
              Estranhava essa forma instintiva de agir, quando sempre fora perita em usar sua frieza, porém isso não se aplicava a neta de Frederico, desde que a conheceu, a sua personalidade selvagem fora libertada e com a amnésia da garota as coisas estavam pior.
             Ao chegar ao destino, ela entrou sozinha na sala da médica, enquanto a ruiva a ficou esperando na recepção. Folheava uma revista distraı́da, quando sentiu alguém sentar ao seu lado.
               -- Então, a bela ruiva reaparece...
              A condessa levantou a cabeça e viu Sofia.
             Não voltara a ver a loira que lhe chamara tanta atenção meses atrás. Na verdade, nem mesmo se interessou ou se preocupou com isso, pois estava bem distraı́da com sua Branca de Neve.
               Foi surpreendida com um beijo rápido nos lábios.
               -- Olá, Sofia. – Sorriu sem jeito. – O que faz aqui?
              -- Eu trabalho aqui. – Fitou-a intensamente. – E você? Está doente? – Perguntou preocupada.
              -- Não!


           Foram feitos vários exames em Maria Clara, em seguida ela sentou para falar com a neurologista.
           -- Bem, está tudo ok. Acho que agora devemos ter paciência para que sua memória possa voltar. – Jane a fitou. – Algo lhe pareceu familiar nesses dias?
            A face de Clara foi tingida pelo vermelho intenso.
            Tivera alguns flashes, temia que fossem verdadeiras e isso a assustava.
            -- Diga, preciso saber para te ajudar. – Jane deu a volta e foi até ela, sentando ao seu lado. – O que está vendo?
               A Duomont fitou a mulher.
            -- Não há nada que seja relevante. – Disse por fim.
           -- Está bem, mas quero que tenha um acompanhamento psicológico. – Ajudou-a a levantar. – Venha comigo, quero que conheça alguém que vai lhe auxiliar nesse processo.




               -- Gostou da minha sala? – Sofia parecia encantada com a ruiva.
        Ficara triste quando não tivera como contatar a linda mulher que mexera tanto com seus sentimentos. A condessa sentou, observando atenciosamente o ambiente. Mirou o divã, os quadros expressionistas.
              -- O lugar é interessante, tem bom gosto.
              A psicóloga puxou uma cadeira se acomodando bem perto de Vitória.
            -- Mas o que a trouxe aqui? – Segurou-lhe a mão. – Não diga que descobriu que eu trabalhava aqui e decidiu me visitar.
              Antes que a empresária pudesse responder, a porta foi aberta.
           Clara observou a cena suspeita e não conseguiu explicar, mas não gostara nada da loira que estava praticamente sentada no colo da ruiva. Era como se já a conhecesse.
           -- Olá, titia. – Sofia levantou-se. – Reencontrei uma amiga aqui, não é muita coincidência?                    Vitória também se levantou.
          -- Conheço a doutora Jane. – Sorriu. – Só não sabia que vocês tinham algum tipo de parentesco.
             -- Bem, essa é a Maria Clara. – Apontou para a jovem. – Quero que você a acompanhe em seu processo de recuperação.
              Sofia fitou a Duomont.
          Ambas se encararam por infinitos segundos. A neta de Frederico tinha a imagem daquela mulher viva em sua mente, tinha certeza que a conhecia e não parecia ser alguém que lhe trazia boas lembranças.
              -- Quero ir embora. – Fitou a ruiva. – Leve-me para a casa.
              -- Mas, querida, gostaria que suas sessões começassem hoje. – A neurologista insistia.
              -- Não, não quero. – Protestou.
              Clara saiu da sala e a condessa se desculpou, indo atrás da jovem. Alcançou-a na recepção.
               -- O que houve? – Indagou caminhando ao lado dela.
               -- Quero ir pra casa, já disse. – Fitou-a. – Deixe-me em paz.
           A ruiva deu de ombros, seguindo ao lado da moça até o carro. Ao tentar ajudar a jovem a entrar no veı́culo, foi repelida bruscamente.
          Impaciente, Vitória deu a volta, esperando pacientemente que ela entrasse, depois deu partida sem ousar falar mais nada.


           Marcelo estacionou em frente à casa de Otávio. O homem o estava esperando em seu escritório.
              -- Boa noite! – O prefeito cumprimentou.
              -- Sente-se! – O fazendeiro apontou uma cadeira para ele. – O que o traz aqui?
           -- Vim porque quero lhe expor um plano para que possa se sair bem assumindo a administração da cidade. – Sorriu. – Sem falar que a condessa será a responsável por tudo e ela quem pagará por todos os crimes.
             -- E o que você ganhará com isso? – Otávio o encarou e parecia interessado.
             -- A metade de tudo que pertence a Vitória Mattarazi. – Disse com um sorriso.




           Clara não aceitou ser acompanhada psicologicamente por Sofia, então fora optado apenas que a neurologista a observasse com maior frequência.
            As sessões de fisioterapia iniciariam no dia seguinte.
        A condessa se mantinha sempre presente, mesmo diante dos olhares enraivados da Duomont.  Não sabia o motivo de tanto rancor, ela estava cada vez mais arisca.
            Banhou e seguiu para a varanda do quarto.
            Observou a noite iluminada por luzes artificiais. Sentiu saudades de sua fazenda, das estrelas que podia ver no céu. Pegou o copo que deixara na mesinha, bebendo o conteúdo todo de uma vez.
              Apoiou-se à varanda sentindo o álcool entorpecer um pouco dos seus sentidos.
            Não deveria tê-la beijado, pois seu corpo fora despertado desgraçadamente. Desejava tê-la em seus braços, amá-la intensamente, sentir a pele nua sob a sua, seus beijos molhados... Sua lı́ngua...
              Deixou o copo de lado, levando a própria garrafa a boca tanta era sua agonia.
           Nunca sentira tanta dor como quando fitava os olhos negros. Havia tanto desprezo em seu olhar, tanta mágoa...
              Nem parecia a sua Branca de Neve... Sua princesa...


             Clara acordou assustada, gritando.
         Observou o quarto envolvido na penumbra. Sentiu o ar não chegar aos seus pulmões, tentou levantar, esquecendo- se do problema da perna, acabou caindo.
          Vitória achou que ouvira algo, mas seus sentidos estavam tão entorpecidos que pensou está ouvindo coisas, então ouviu novamente e percebeu de quem se tratava.
         Saiu correndo de volta ao quarto, entrando nos aposentos de Clara. Acendeu as luzes e foi quando a viu caı́da, perto da cama.
             Imediatamente foi até lá, levantando-a, colocando-a no leito.
            A jovem estava aos prantos, percebeu que ela estava com falta de ar, viu a bombinha do outro lado do quarto, pegando-a, entregando-lhe.
           -- Calma, eu estou aqui. – Sentou-se. – Quer que eu chame o médico? – Indagou preocupada.                A Duomont fez um gesto negativo com a cabeça.
             Passaram-se alguns minutos até que voltasse a respirar normalmente.
           A condessa viu o rosto molhado de lágrimas. Encostou-se ao espaldar da cama, trazendo-a para seus braços, acomodando-a em seu peito.
            Clara pensou em afastá-la, mas se sentiu tão segura ali, que apenas se deixou ficar, como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.
             -- Sua perna está doendo?
            A morena a fitou.
            -- Eu me desequilibrei, mas não a machuquei.
            -- Você teve sorte, mas tem que tomar cuidado, pois pode se prejudicar ainda mais.
            A Duomont observou os lábios rosados, os olhos verdes que eram os mais belos que já viu.
           -- Você estava bebendo? – Indagou desconfiada. Sentiu o cheiro de álcool.
           -- Só um pouco.
            -- A essa hora? – Fitou o relógio da cabeceira. – É quase uma da madrugada.
            -- Durma, ficarei aqui com você.
            -- Eu tive sonhos ruins... – Disse baixinho.
            -- Foram apenas sonhos. – Tocou-lhe as madeixas negras. – Nada de mal vai lhe acontecer.
       Clara deitou a cabeça em seu ombro novamente, estava sonolenta e acabou dormindo rapidamente nos braços de sua linda condessa.

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