A condessa bastarda -- Capítulo 3




                  Maria Clara terminou de banhar com a ajuda da mãe e começou a se vestir. Teria que comparecer a uma reunião do partido.
                  -- Estou mais tranquila com a prisão daquela louca. – Dizia Clarice, enquanto escovava-lhe os cabelos.
                  -- Ela foi presa? – Movimentou-se incomodada na cama.
                  -- Sim, ontem! – Falou, terminando o ato. – Está linda... E' a mais linda de todas. A jovem sorriu tı́mida.
                  -- O Marcos disse que assim que terminar as eleições, vocês irão casar. – Entregou-lhe as muletas. – Seu avô já trouxe o seu carro adaptado. Sei que você precisa da sua independência, não precisará mais que te levem onde quiseres ir.
A jovem assentiu.
                 -- Preciso que ligue para o fisioterapeuta, tenho que iniciar as sessões o mais rápido possıv́  el. Quero voltar a montar.
                 -- Não, filha, por favor, não faça isso. Não entende que é um esporte muito arriscado.
                 -- E eu o pratico desde os seis anos e nunca tive nenhum problema. Só cai naquele dia porque alguém cortou a sela. – Retrucou impaciente. – Estou indo ou acabarei me atrasando. – Beijou a mãe e saiu do quarto.
                Clarice não via a hora de casar a filha. A menina tranquila e obediente estava criando uma personalidade forte. Certa rebeldia que só o matrimônio daria um basta.




                A condessa estava livre. Pagará fiança e não precisará dormir na delegacia.
                Acordou cedo, foi direto para as baias. Encontrou o fiel companheiro lá. Acariciou-lhe e o bicho se esfregou em sua mão.
               -- Vamos dar uma volta? Preciso ver os campos e verificar os animais. – Entregou-lhe uma cenoura. – Se estiver cansado posso pegar outro.
              O garanhão pareceu não gostar da ideia. Vitória sorriu.
              Acabou de selá-lo e saiu em disparada.


              Maria Clara seguia por uma estrada de barro muito estreita. A reunião tinha sido transferida para a fazenda do presidente do partido. O lugar ficava demasiadamente distante, mas se saı́sse cortando por uma via toda arborizada conseguiria chegar à metade do tempo.
             Decidida, tomou o caminho. Ligou o rádio e ficou a ouvir algumas baladas românticas.                      Sempre fora seu estilo de música favorito. Enquanto as amigas se jogavam no pop e até mesmo funk, a ú nica herdeira dos poderosos Duomont curtia algo mais tranquilo aos ouvidos.
           Ouviu o celular tocar e viu aparecer a foto do namorado. Ele já deveria estar desesperado com o atraso dela. Tentou discar, mas teve perda de sinal. Acelerou um pouco mais.
           Prefeita?
           Nunca pensara em entrar na polı́tica, mesmo sendo de uma famı́lia de polı́ticos. Seu avô não poderia concorrer a nenhum cargo durante muitos anos, fora declarado inelegıv́el. Seu pai era vereador, mas não parecia ser popular o suficiente para aspirar à prefeitura, então só restara ela. Frederico disse: Com sua carinha de anjo poderemos ir longe...
Sorriu!
          Bem, aquela era uma boa oportunidade para fazer algo pela população que vivia naquele lugar. Pelo que ficara sabendo pelos pais e pelo avô, a maioria dos empregos vinham direto da fazenda e da usina Mattarazi e os empregados tinha a mesma rotina dos escravos. Trabalhavam demasiadamente e ganhavam pouco. Lutaria com todas as forças para que aquilo acabasse. Traria outras frentes de trabalho para a região, ajudaria àquelas pessoas a terem dignidade.
           Distraı́da, precisou frear bruscamente ao notar a amazona montada em seu enorme cavalo. O animal levantou as patas dianteiras, relinchando.
           Sentia a adrenalina dominar todo o seu corpo. Por um triz não a atropelara. O que aquela mulher estava fazendo ali?
          Sua mãe dissera que ela tinha sido detida. Lerdo engano! Vendo-a agora, a exibir aquela postura de uma rainha, sabia ser impossıv́  el alguém a detê-la ou controlá-la.
          Observou-a para em frente ao seu carro.
          -- O que faz em minhas terras? Quem te deu permissão para trafegar por aqui? – Perguntou rispidamente.
         -- Isso é uma estrada pú blica... – Falou meio confusa.
         -- Não, aqui já é propriedade dos Mattarazis.
         Clara parecia ainda mais desorientada, jamais passara por sua mente que aquela estrada pertencesse àquela mulher.
         -- Eu sinto muito... – Disse com sinceridade. – Não tinha conhecimento desse fato.
         Vitória não pareceu acreditar muito naquelas palavras. Ficou a acariciar a crina brilhante do animal.
         -- E então, Bastardo? O que devemos fazer com a garotinha da cara assustada? A Duomont exibiu uma expressão surpresa.
         -- O nome do seu cavalo é Bastardo?
         A condessa deu de ombros, desmontando da montaria, mas o deixando parado no mesmo lugar para que não houvesse risco da moça fugir.
        Maria Clara observou a roupa que a condessa usava. Ela não era tão alta, deveria ter alguns centı́metros a mais que ela, porém o corpo magro era bem chamativo. A calça de couro, preta, exibia belas pernas longas e torneadas, a camiseta branca colada, deixava a mostra o abdome firme e os seios médios e redondos. Quando ela chegou mais perto, pode ver algumas sardas que se espalhava pelo colo. Porém de tudo aquilo o que mais lhe chamava a atenção era a tonalidade verde dos olhos, que a fazia se lembrar de esmeraldas, e as madeixas ruivas que lhe davam um ar selvagem.
        -- Vou lhe contar uma história. – Agachou-se para poder apoiar-se na janela.
       A condutora do veı́culo pressionou o corpo ainda mais contra o banco para evitar qualquer tipo de contato com aquela mulher. Fitou-a e observou os lábios exibirem aquela expressão de puro sarcasmo.
       -- Bastardo é filho de um garanhão árabe. – O tom baixo era hipnotizante. -- O pai dele faz parte de uma linhagem nobre, puro sangue. Ele só cruzava com animais da seu estipe, porém um dia ele se interessou por uma égua sem raça, pertencente a um dos empregados da fazenda... – Ficou alguns minutos em silêncio, pensativa, distante... Até voltar a fitar a jovem. – Por isso ele é um bastardo. – Sorriu.
       Clara fitou o animal e depois encarou a condessa. Não sabia o porquê, mas tinha a impressão que aquele bicho parecia com sua dona.
       Recordou de ouvir da famı́lia que a herdeira dos Mattarazis era ilegı́tima. Fruto de uma relação ilı́cita.
       -- Sabia que eu recebi uma ordem de restrição que diz que devo manter uma distância de noventa metros de ti. Mas nesse caso você veio até mim e estamos tão coladinhas que consigo sentir o seu aroma de flores. – Relanceou os olhos tediosamente.
       -- Já disse que não sabia que estava em suas terras. – Falou impaciente. – E quanto à ordem judicial, foi bem merecido. – Ligou o carro. – Tire o seu cavalo da frente ou passarei por cima.
       Vitória observou o lampejo de raiva passar por aqueles olhos negros e ficou surpresa. Encarou-a e ficou a observá-la cuidadosamente. A pele dela era branca, os lábios eram vermelhos e o formato lembrava um coração. Não sabia o motivo, mas a jovem a fazia lembrar as princesas dos contos de fadas.
        Irritou-se por ela ter exibido arrogância e ainda mais pela petulância que usara ao ameaçar atropelar o Bastardo. Retirou um pequeno punhal da bota, agachou-se e segundos depois retornou.
        -- Espero que chegue ao seu destino e não demore muito... – Seguiu até a montaria. Montando. – É apenas um conselho. 
         Antes que Maria Clara pudesse falar algo, a condessa saiu em alta velocidade.
         Ela tinha furado o pneu do carro! – Constatou furiosa.
         Clara preferiu não esperar mais um único segundo, pois temia não chegar à reunião e ficar no prego em meio aquele campo enorme e vazio.
         Marcos olhou o relógio mais uma vez. Discou várias vezes o nú mero da namorada, mas nada de ela atender. Estava a ponto de sair em sua procura quando viu o carro estacionar em frente a casa.
         Desceu os degraus correndo e foi até a amada.
         -- O que houve, amor? Você está atrasada. – Retirou as muletas, entregando-lhe.
         -- Acabei me perdendo... E acabei entrando nas terras da condessa.
         -- Mas como?
         -- Olha, não quero falar sobre isso agora, vamos entrar. – Disse impaciente.
         O rapaz percebeu que ela parecia muito perturbada, mas decidiu ignorar esse detalhe.


         Vitória chegou à cidade. Fora chamada por Otávio, um fazendeiro de meia idade que fora bem próximo de sua famı́lia.
         -- Sente-se! – O senhor de cabelos grisalhos pediu.
         Havia outro homem presente na elegante sala de estar. Ela o conhecia bem. Alex era um ambicioso assessor polı́tico e também jornalista de uma emissora da cidade. Ele se achava o último bombom do pacote. Loiro, olhos verdes e corpo atlético, chegara a algumas ocasiões a tentar seduzir a Mattarazi.
         -- Diga o que deseja, pois tenho que viajar ainda hoje.
         O homem idoso fitou o outro e sorriu. Conhecia muito bem a condessa. Era arrogante e orgulhosa, tinha infinita sede pelo poder.
         -- Amanhã, ocorrerão as convenções do partido e com toda certeza, serei escolhido como candidato a prefeito. A ruiva cruzou as pernas, arqueando a sobrancelha direita.
         -- E o que eu tenho a ver com isso?
         -- Bem, seu pai, toda sua famı́lia era afiliada ao partido...
         -- E? – Falou impaciente.
         O homem levantou-se, seguiu até o elegante bar, preparou drinques e serviu aos presentes.
         -- Quero que seja a minha vice na chapa.
         A condessa ficou a observar o lı́quido âmbar, mas não bebeu.
         -- Não gosto de polı́tica, odeio toda essa hipocrisia.
         -- Mas odeia ainda mais os Duomont. – Alex falou sorridente. – Algumas pesquisas mostram que a jovem Maria Clara é uma imponente forte e temos certeza que você não deseja que a nossa cidade fique nas mãos da famı́lia que vive tentando te destruir.
         Otávio se aproximou e sentou ao lado dela.
         -- Sabemos que essa garota é apenas um fantoche, pois Frederico quem estará à frente de todas as decisões. – Encarou- a. – Imagina como você será ainda mais perseguida se isso acontecer. Vitória levou o copo aos lábios, mas hesitou.
         -- E o que te faz imaginar que eu seria uma boa escolha? As pessoas desse lugar me odeiam.
         -- De certa forma sim, porém isso pode ser mudado facilmente. Afinal, sua fazenda e sua usina são responsáveis por grande parte de empregos.
         -- Sem falar que com a cachaça que agora você está criando, ainda abrira mais frentes de trabalho. – Alex Intrometeu-se mais uma vez. – Entenda que os Duomont na prefeitura seriam um risco para você.
        Ninguém  precisava  dizer  isso,  pois  ela  sabia  muito  bem.  Aquela  famı́lia  a  perseguia  desde  o  terrıv́el  acidente  que ceifara a vida dos Mattarazis. Nem mesmo esfriara o corpo dos pais e do irmão e ela fora presa, acusada de ser a responsável pela morte de todos. Nunca esqueceria aquele dia.
       Bebeu todo o conteúdo do copo de uma só vez.
       -- Eu aceito, mas com uma condição.
       -- Qual?
       -- Eu seria a prefeita. – Sorriu ao ver a expressão chocada dos dois. – Não se preocupem, assim, que vencermos, entregarei o cargo em suas mãos, não quero dinheiro, não quero administrar nada, apenas quero mostrar para Frederico e para a netinha dele que eu posso mais.
        Os dois se entreolharam por alguns segundos, pareciam pensar se valeria a pena correr esse risco.
         -- E então, senhores? – Levantou-se. – Não tenho muito tempo e desejo uma resposta agora.
         -- Aceito! – Otávio estendeu a mão para ela.

         A condessa ignorou o gesto.
         -- Nos veremos amanhã na reunião do partido. – Colocou o chapéu na cabeça e saiu. Os dois homens a observaram partir.
        -- Bem, não foi em vão termos sabotado a sela da Maria Clara. Agora temos o apoio da condessa. – Disse Alex.
       -- Assim espero e continuaremos trabalhando para isso.


       Na hora do jantar ,na casa da famı́lia Duomont, Frederico esbravejava a mesa.
       -- Como essa desgraçada foi capaz de rasgar o pneu do seu carro. Irei exigir que aquela delegada tome providências quanto a isso.
       Clarice fitou o marido, parecia exigir que ele também defendesse a filha. Maria Clara não parecia interessada no assunto, fora Marcos quem falara para seu avô.
        -- Eu tinha invadido a propriedade dela, vovô. – Levou uma colher de sopa a boca.
        -- Isso não é motivo para ela fazer isso. – A mãe interferiu. – A condessa se acha no direito de fazer o que quer. Matara o marido e depois a própria famı́lia e jamais recebeu punição para tal crime.
        A jovem ao ouvir aquelas palavras lembrou-se de Vitória. Ela era tão linda que chegava a ser impossıv́el imaginar que fosse capaz de tal coisa. Não sabia o motivo, mas algo naquela mulher a incomodava demasiadamente.
       -- Não esqueça que ela tentou contra sua vida no dia da competição. Poderia ter acontecido algo muito pior. – A mãe continuou. – Temos que destruı́-la. Expulsá-la daqui.
       -- Calma, querida! – Felipe tocou-lhe a mão. – Iremos proteger a nossa filha, nada acontecerá a ela.
       -- Não mesmo, porque antes eu a mato. – O patriarca completou furioso.
       -- Vou para o meu quarto. – Levantou-se. – Estou me sentindo cansada.
        -- Quer que eu vá contigo? – Clarice indagou, levantando-se.
        -- Não, mamãe, eu estou bem, quero apenas dormir. – Apoiou-se nas muletas e despediu-se de cada um com um beijo. Chegou ao quarto e deitou-se.
        Às vezes, se sentia sufocada com o excesso de cuidados que recebia. Era como se não tivesse capacidade para se defender sozinha ou buscar algo. Sempre fora tratada como uma criança que não sabia o que era melhor para si. Até mesmo fora proibida pelo avô de exercer a profissão de veterinária. Formara-se no inı́cio daquele ano, mas de acordo com as ideias de Frederico, uma Duomont não deveria se rebaixar a uma profissão remunerada.

        Sentiu o ar faltar aos pulmões e imediatamente pegou a bombinha que estava ao lado do criado mudo, e começou a usá-la. Sofria de asmas e sempre que se exaltava tinha crises.
        Talvez fosse esse motivo da superproteção, era tão frágil que era como se fosse necessário que alguém sempre estivesse cuidando de si.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A antagonista - Capítulo 25

A antagonista- Capítulo 22

A antagonista - Capítulo 21