A condessa bastarda -- Capítulo 2



Vitória bateu com chicote na escrivaninha. Estava em seu escritório.
-- Como roubaram? -- Falou por entre os dentes.

O capataz a conhecia, mas mesmo assim temia a fú ria da mulher. A` s vezes ficava a se perguntar como um ser tão bonito tinha um gênio daqueles.
-- Sim, condessa! -- Falou relutante. -- Cinco das melhores vacas sumiram quando estavam a pastar do outro lado do
rio.
-- Procurem-nas! -- Bateu mais uma vez. -- Para que pago a um monte de incompetentes se eles não conseguem nem
encontrar meus animais.
O rapaz baixou o olhar.
-- O fizemos durante toda a noite, mas como se os bichos tivessem sido engolidos pela terra. Ela deu a volta e parou bem próximo a ele.
-- Saia!
O empregado assentiu e sumiu em disparado.

Vitória sentou na poltrona e retirou as botas de couro. Estava cansada. Tinha chegado de uma longa viagem. Precisara negociar com alguns empresários e isso fora demasiadamente exaustivo.
Encostou-se e apoiou a cabeça.

Ela sabia que esses roubos que estavam ocorrendo em sua propriedade não era algo feito por qualquer ladrão, tinha certeza que alguém estava fazendo aquilo e suspeitava de Frederico Duomont e sua prole.
Miseráveis!

Por culpa daquele desgraçado, Vitória fora acusada de assassinato e ainda enfrentava o desdém de todos naquela cidade. Estava cansada de tudo aquilo e não permitiria que eles saı́ssem vencedores. Enfrentara muita coisa para chegar até ali e querendo ou não era ela a condessa Mattarazi.
Observou o porta retrato que repousava sobre o criado mudo.
Havia uma nica foto ali e era o seu irmão com a filhinha nos braços. Vitor!
Seu irmão tinha o sorriso mais sincero, o olhar mais gentil que um dia pode ver em um ser humano. Fora dele o nico afeto que recebera durante toda a vida. A sinceridade com que lhe falava, o jeito que demonstrava o seu amor. Gostaria de tê- lo ao seu lado, gostaria de ter partido com ele. Cada dia que passava, a saudade só fazia aumentar. Lembrou-se de Helena. Ela destruı́ra a vida de um jovem sonhador, a mesquinhez e ambição daquela mulher fora o estopim para a destruição do futuro conde.
No dia seguinte completaria seis anos do acidente que ceifara a vida de todos. Acomodou-se no sofá, fechou os olhos e acabou dormindo.

Os Duomont mandara rezar uma missa para a alma de Helena. Todo ano a famı́lia se reunia na igreja e chorava pela morte prematura da jovem e da sua filhinha. Aquela era a primeira vez que Maria Clara se encontrava presente. O recinto religioso estava cheio. Alguns a observavam com curiosidade, não pareciam interessados nas palavras do padre, mas sim na vida dos que ali estavam presentes.
Olhou o relógio. Quase dez da manhã. Mas o dia estava sombrio, parecia estar se preparando para chuvas. Remexeu-se no banco.
-- Tudo bem, amor? -- Marcos indagou.
O rapaz e a famı́lia estavam presentes. Ele ao lado da amada.
-- Estou com falta de ar... -- Abanou-se. -- Vou lá fora por alguns minutos. Ele assentiu e a jovem pegou as muletas, saindo vagarosamente.
Observou a rua deserta. Era domingo. Ou as pessoas estavam na missa ou em suas casas dormindo. A cidade era pequena, acolhedora. Ruas estreitas, praças e algumas lojas ao centro. Ela morava em uma fazenda dez minutos distante dali. Era um belo lugar e muito grande. Uma verdadeira mansão, sem falar nos outros atrativos do lar que ocupava uma enorme faixa de terra.

Seguiu caminhando lentamente e acabou chegando ao cemitério. Era um lugar pequeno que ficava um pouco afastado da área central.

Sentiu dores nas pernas e teve que se apoiar no muro para descansar um pouco. Arrependeu-se de ter ido até ali, não teria condições de retornar.
Repirou fundo até sentir-se melhor. Sorte que estava com o celular. Ligaria para o namorado ir ao encontro dela.

Percebeu uma movimentação mais a frente e assustou-se, afinal, o lugar estava totalmente deserto e não havia casas por ali. Deu a volta no muro e percebeu que havia um enorme garanhão preto amarrado a uma árvore. Reconheceu-o imediatamente. Era o árabe que a Mattarazi montara no dia da competição.
Encantada, chegou mais perto.
Nunca vira um animal tão lindo. Grande e pomposo, parecia saber a quem pertencia.
Estendeu a mão para tocá-lo, mas o bicho levantou as patas dianteiras, o que fez a jovem se desequilibrar.
-- O que fez com ele?

Maria Clara ouviu a voz firme e depois a mulher vestida em roupa de montaria se aproximar, tentando acalmar o animal.
Os olhos de um intenso verde a fitaram, estreitando-se, de forma ameaçadora.
A garota tentou levantar-se, mas parecia impossıv́  el, pelo menos conseguira sentar.
-- Responda! O que fazia com ele? -- Repetiu se aproximando.
A sobrinha de Helena se encolheu quando a viu bater com chicote na própria bota.

Tentou levantar-se, mas fora mais uma tentativa fracassada. Sentia-se constrangida por estar em tamanha desvantagem.
-- Poderia ajudar-me? -- Estendeu a mão.
Vitória abriu um enorme sorriso, aproximando-se ainda mais.

Clara observou as botas de couro brilhar de tão bem cuidada. Pela primeira vez pode vê-la de perto. Os olhos pareciam duas esmeraldas, os cabelos estavam soltos. Pareciam pintados de fogo. Era demasiadamente linda. O sorriso era enorme, os lábios vermelhos... Cheios... Suculentos...
Sentiu as gotas de chuvas começarem a cair.
-- Não! -- Afastou-se, montando o cavalo. -- Jamais ajudaria uma Duomont e não sujaria minhas mãos tocando em uma. Instintivamente, Clara conseguiu desviar das patas do garanhão que passara em disparadas por si.
Sentia as batidas do coração acelerar. Sabia que se não tivesse saı́do da frente, ela teria passado por cima de si sem dar nenhuma importância para isso.
Não havia dúvidas sobre a maldade daquela mulher.

Esperou os batimentos voltassem ao normal, em seguida pegou o celular no bolso e discou para Marcos ir ao seu resgate.


A condessa esporeou ainda mais o animal. Sentia a chuva chicoteando-lhe o rosto, encharcando-lhe as roupas, mas mesmo assim continuou a correr. Observou o campo aberto, não havia casas, só mato e árvores. Suas terras já estavam à vista, porém a casa ficava a uma hora dali.

Decidiu parar em um estábulo desativado que ficava a meio caminho. Desmontou e acomodou o animal em meio aos destroços.
-- Bastardo! -- Afagou a montaria. -- Você é tudo o que me restou. -- Tirou uma cenoura do bolso e colocou na boca do
bicho.
Ganhara aquele lindo animal do meio irmão. Ele era filho do cavalo árabe de Vitor. Lembrou-se de como o pai e a
madrasta se opuseram ao presente, mas o rapaz fora firme e não aceitara a interferência de ninguém.
Viu que a chuva diminuıia e decidiu seguir caminho.


-- Iremos passar na delegacia agora mesmo. -- Marcos deu partida no carro.
Ele fora ao socorro da amada e a encontrou caı́da. Tinha alguns arranhões no rosto.
-- Não acredito que vá adiantar alguma coisa. -- A garota protestou.

-- Como não? -- Fitou-a. -- A maldita condessa quase passou por cima de ti com aquele monstro. -- Tocou-lhe o rosto. -- Você está toda machucada, meu amor. Não podemos permitir que essa mulher saia impune, não basta o que ela já fez e nunca fora cobrada por isso.
A jovem mordeu o lábio inferior e acabou assentindo.

O rapaz deu-lhe um beijo rápido e seguiu, estacionando em frente à pequena delegacia. Ajudou a namorada a sair, entregando-lhe as muletas. Entraram.
-- Bom dia! -- Um policial cumprimentou-os. -- Algum problema?
-- Sim! -- O jovem se antecipou. -- Queremos fazer uma denúncia contra a condessa Vitória Mattarazi.


Vitória retornou a casa e seguiu direto para a usina. Seu maior investimento era cana-de-açú car. Além de plantar, ela também produzia etanol e em breve começaria a produzir cachaça.
-- E como estamos indo?

Batista era um homem de meia idade que morava junto com a famı́lia nas terras da condessa. Trabalhava ali desde jovem e desde as mortes da famı́lia, assumira o papel de administrador.

-- Com certeza não teria como está melhor. -- O homem lhe entregou as roupas adequadas para entrarem na sala de quı́mica. -- A bebida está pronta. Quero que prove-a.
A ruiva colocou a vestimenta sobre a que já estava a usar. Seguiram para o lugar, onde muitas pessoas trabalhavam. Batista pegou a bebida cristalina, colocou no copo e entregou-a. Vitória degustou lentamente, saboreando a destilada.
Sorriu!
-- Está uma delicia. -- Tomou o resto do conteúdo. – Parabéns! conseguiram o ponto certo.
-- Agora só precisamos de um nome.
A condessa ficou a pensar, até esboçar aquele sorriso irônico de canto de boca.
-- Bastarda! A cachaça da condessa! -- Encheu o copo mais uma vez e levantou-o em um brinde.


A viatura parou em frente a enorme casa de três andares.

A delegada saiu do carro, acompanhada de dois policiais. Já estivera ali algumas vezes, ainda mais quando houve a denúncia contra a jovem, após perder a famı́lia em um acidente de carro. Não tivera mais contato com ela, raramente ela aparecia na cidade, mas todos falavam daquela figura perturbadora.

Seguiu até a entrada da casa e apertou a campanhia. Em poucos segundos, a mesma senhora de aspecto maternal abriu a porta.
-- Boa tarde!
Julieta era a esposa de Batista e era ela a responsável de cuidar e administrar a enorme mansão.
-- O que deseja? -- Perguntou meio que assustada.
-- A condessa se encontra?
Antes que a senhora pudesse responder, uma voz firme e rouca foi ouvida.
-- Olá, delegada, que surpresa vê-la...
Valentina fitou a ruiva que descia elegantemente a escadaria.
-- Não me diga que veio para o lanche da tarde? -- Ironizou com um sorriso. -- Pode ir, Julieta, eu atendo a visita. A mulher assentiu, deixando-as sozinhas.
-- Vamos ao meu escritório. -- Seguiu na frente.

A delegada conhecia aquele ar sarcástico muito bem. Aquela jovem parecia que tinha sempre aquela forma de deboche, tanto nos seus atos, como na própria voz. Recordou de quando chegara cidade, seu maior desafio fora condessa.
-- Sente-se!

Valentina observou o lugar que não mudara nada naqueles anos. A ruiva sentou e ficou a girar na cadeira.
-- E então? Veio me prender pela morte de quem?

Vitória fitou a autoridade sentada a sua frente. A delegada era uma mulher firme, deveria ter seus quarenta anos e era uma morena muito bonita.

-- Recebemos uma denúncia contra a sua pessoa. -- Entregou-lhe um papel. -- Vim pessoalmente, pois desejo evitar problemas.
A condessa observou a intimação, em seguida amassou e jogou-a no lixo.
-- Sabe que eu poderia prendê-la por isso, não é?

-- E o que a senhora deseja que eu faça? A famı́lia Duomont não me deixa em paz e agora essa garota vem me acusar de quase tê-la pisoteado e pior, vem me acusar de ter cortado a sela do cavalo no dia da competição?
-- Então, diga-me o que aconteceu. -- Pediu pacientemente.

Valentina era casada com o advogado da condessa e pelo que o marido falava, percebia que Vitória não era aquele ser insensıv́ el que aparentava.
A jovem levantou-se impaciente, surpreendendo-a.
-- Não tenho nada para dizer. -- Estendeu os pulsos. -- Prenda-me, afinal, isso que todos desejam. A delegada assentiu.
-- Só preciso que esclareça as coisas. -- Insistiu.

-- E eu repito que não tenho nada para falar. -- Aproximou-se com os pulsos estendido. -- Não vai me algemar? -- Arqueou a sobrancelha. -- Não esqueça que sou uma assassina fria que, de acordo com vocês, foi capaz de matar o marido e a própria famı́lia em um acidente de carro.
A morena fitou aqueles olhos verdes.
-- Ligue para o seu advogado. -- Retirou as algemas da cintura.
A condessa apenas deu de ombros, relanceando os olhos em sinal de tédio.




Frederico estava em seu escritório.

-- Não pode ficar impune o que essa mulher fez com a minha filha. -- Clarice parecia descontrolada. -- Temo que ela possa fazer o mesmo que fez com a Helena.
Felipe abraçou a esposa.
-- Não permitiremos que isso aconteça, a denú ncia já foi feita. Ouviram o som do telefone.
O ex-governador atendeu prontamente e depois de alguns segundos de conversa, desligou.
-- A maldita condessa está detida na delegacia. Acho que dessa vez o poder dela não foi suficiente para salvá-la. Clarice pareceu aliviada com a notı́cia.

-- Onde está a Mattarazi?
Valentina observou o marido, Miguel, entrar em sua sala.
-- Quem ligou para ti?

-- A Julieta! -- Parou em sua mesa. -- A senhora não tinha o direito de detê-la. A minha cliente não apresenta nenhum tipo de ameaça a ninguém.

-- Ela quase pisoteou a neta de Frederico Duomont. -- Retrucou firme. -- E ainda tem o agravante de ter cortado a sela do cavalo da jovem.
-- E quais são as provas que a senhora tem? A palavra dessa moça contra minha cliente?
-- A sua cliente não pareceu interessada em se defender e nem mesmo solicitou a sua presença.

-- Deixe-me vê-la. -- Exigiu. -- Entregou-lhe a autorização. Valentina assentiu e pediu para o policial levá-lo até lá.
Observou o olhar indignado do marido. Sempre fora contra a ele trabalhar para a condessa, mas passando por cima de seu desagrado, Miguel se tornara o advogado de Vitória Mattarazi. Sabia que o marido tinha um carinho paternal por aquela mulher forte e sempre estava disposto a defendê-la. De inı́cio pensara que fosse mais um apaixonado pela ruiva, mas depois de saber a história, entendera o motivo de tanto amor...


O homem aproximou-se da cela e viu a cliente, mesmo diante da escuridão. Ela estava sentada com as pernas dobradas e a cabeça apoiada nos joelhos.
Sentiu um aperto no peito ao vê-la daquele jeito.

A conhecera quando ela era ainda uma menina. Fora um grande amigo do seu irmão. Ele quem a defendera da acusação de assassinato da famı́lia. Naquele dia, conseguira ver naquele olhar que aparentava ser duro, algo que o tocara profundamente. Uma tristeza, medo, dor... Uma profunda dor naqueles olhos tão lindos.
-- Condessa?
-- O que quer? Quem te chamou? – Indagou sem levantar a cabeça.
O homem pediu ao guarda para abrir a cela, mas o rapaz disse que não tinha ordens para aquilo. O advogado segurou nas barras.
-- Julieta me ligou e avisou o que tinha acontecido.
-- Não a mandei fazer isso.

-- Ela o fez porque se preocupa contigo, estava desesperada. – Respirou fundo. – Deveria ter me ligado logo que a Valentina aparecera na fazenda.
Naquele momento Vitória levantou a cabeça e fitou-o.
-- Vá embora...
-- Irei, mas te levarei comigo. Pegou o celular e discou para o juiz. Alguns minutos se passaram até ele encerrar a chamada.
-- Irei ao fórum atrás do habeas corpus. Mas antes eu quero que me explique o que aconteceu. Por que estão dizendo que fizeste essas coisas? – Deu uma pausa. – Você não cortou a sela, tenho certeza.
-- Não, não o fiz.
-- Eu acredito! – Miguel parecia aliviado.
A condessa levantou e seguiu pela minú scula cela até ele.

-- Não cortei nada. Sou muito boa no que faço, a melhor amazona de todas, não preciso usar de artimanhas para vencer ninguém.
-- Não há dúvidas.

-- Mas... – Cerrou os olhos. – Eu quase a pisoteie com o Bastardo. Se ela não tivesse desviado, eu teria feito um omelete da Duomont.

O advogado respirou fundo. Sabia que aquelas palavras eram verdadeiras. A conhecia o suficiente para saber que a jovem não temia nada e nem ninguém, então não se importava em dizer o que pensava.
-- Não deveria ter feito isso. – Começou. – Não basta os problemas que tem com aquela famı́lia? Tente ignorá-los.

-- Eles estão roubando meu gado e se eu pegar um deles com os pés nas minhas terras, darei ordens para atirar. Disse por entre os dentes.
-- Irei buscar a ordem de soltura.
Vitória apenas deu de ombros, observando-o sumir pelos corredores daquele lugar que lembrava mais uma masmorra.

Fechou os olhos e sorriu ao recordar da cara de assustada da tal Maria Clara. Ficara surpresa no dia do campeonato. No passado, só a viu por ali uma nica vez, no dia do enterro da famı́lia.
Lembrou-se do olhar dela naquele fatı́dico dia. Aqueles olhos pareciam querer hipnotizar.

Agora ela tinha retornado e pelo que andara ouvindo na cidade, a garota miúda e de traços que a fazia se lembrar das princesas dos contos de fadas, era a candidata prefeita do municı́pio, mas ela só ganharia e assumiria a prefeitura passando por cima do seu cadáver.

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